Por
José Aluísio Botelho
A
história que contaremos é baseada em fatos, extraídos de um
documento oficial relativo a um processo criminal que trata de um
assassinato ocorrido na vila de Araxá em 1836. O crime repercutiu no
parlamento do império no Rio de Janeiro, provocando debates
acalorados entre os opositores do deputado e ex-ministro da justiça, cunhado do acusado, como se verá
adiante.
Muitos
podem perguntar porque um blog especializado em genealogia
paracatuense, está a publicar uma crônica fora do contexto?
A
publicação deste texto no blog se dá por dois motivos relevantes:
primeiro, pela importância do documento, ora localizado, para a
história de Araxá como contraponto a uma colossal obra de ficção
sobre a personagem e o mito Dona Beja, que ultrapassou suas
fronteiras se tornando de conhecimento nacional.
Em
segundo lugar, porque um dos protagonistas de toda a trama na vida
real era natural de Paracatu, e, portanto, de interesse para a
genealogia paracatuense, membro que foi de tradicionais famílias de
lá, tais como os Carneiro de Mendonça e Roquete Franco. Acresce
também o fato de outros indivíduos naturais de Paracatu e que
adotaram a então vila de Araxá para viver estavam envolvidos direta
ou indiretamente no processo.
“A
realidade injeta vida na ficção e a ficção injeta vida na
realidade.”Jorge Amado, in A morte e morte de Quincas Berro D’água.
A
MORTE NA FICÇÃO
Na história do mito Dona Beja, tanto nos romances, como na
telenovela, o fazendeiro Manoel Fernandes de Sampaio, as vezes
chamado de Antônio, como na novela, outras de Manoel Fernando, é
construído como o grande amor da heroína, e sua morte era
fundamental na construção da prostituta poderosa, a cortesã que
passaria a ter uma vida de luxo às expensas de clientes, ricos
fazendeiros da região. Na trama, ele se tornou um entrave na vida
de Beja, com suas crises de ciúme doentio e que culminaria com o seu
assassinato a mando dela, magoada com o amante, por tê-la
espancado até quase a morte em uma dessas crises. A execução do
crime ficou a cargo de um seu escravo de nome Antônio Ramos. No
contexto criminal, a eliminação de Sampaio foi necessária para a
construção da ficção em torno de Ana Jacinta de São José como já dissemos acima, e
parece-nos que seu idealizador e criador (no caso, o historiador
Sebastião de Affonseca e Silva), teve acesso ao processo judicial
relativo ao assassinato, porque existem semelhanças nos nomes do
executor do crime e no desfecho do caso, quando ela foi absolvida por
falta de provas. Também na ficção, a esposa de Sampaio ficou conhecida
como Ana (Aninha) Felizarda, o mesmo da vida real, que submissa, sofria em silêncio a traição
do marido. O segundo personagem emblemático na formação da
história da heroína, rival do Sampaio, foi João Carneiro de
Mendonça, que na narrativa aparece como o promotor que a livrou da
prisão, bem como o outro amante preferido, e protagonista no assassinato do Sampaio histórico. Dona Beja teve duas filhas: Tereza e Joana. Nos romances, teve Tereza com Manoel Fernandes de Sampaio e Joana com João Carneiro de Mendonça. Por fim, Manoel Fernandes de Sampaio foi morto a mando de Dona Beja. Passemos, pois, a segunda morte.
“É
o que eu digo… Existe é o homem humano. Travessia. (Guimarães
Rosa, in Grande Sertão, Veredas)”
A
MORTE NA VIDA REAL
A
realidade se mostrou diferente da ficção. Manoel Fernandes de
Sampaio, histórico, humano de carne e osso, realmente morreu de morte matada na
então vila de Araxá em 1836. Fazendeiro abastado, tendo ocupado
cargos importantes na vida administrativa da vila, migrante como a
maioria dos pioneiros que lá se estabeleceram nas primeiras décadas
do século dezenove. Ainda não foi possível elaborar um esboço
genealógico do personagem em questão, porquanto nada se sabe acerca
de sua naturalidade/nacionalidade, de onde veio, nem o nome de seus
pais - dele, através do senso de 1832 realizado na vila de São
Domingos do Araxá, sabe-se que era branco, casado, com idade de 46
anos, nascido, portanto, cerca de 1786. Casou por volta de 1825 com
Ana Felizarda de Resende, bem mais jovem que ele (declara ao senso de
1832 ter 24 anos): o casal teve quatro filhos – Placidina Cândida
de Resende, Forbes Fernandes de Sampaio, Maria e João, nascido após
a morte do pai; Ana Felizarda de Resende era filha de Lourenço
Pereira da Costa Guimarães e de Joana Cândida de Resende, esta oriunda
da tradicional família Resende Costa de Minas Gerais, trineta do
açoriano João de Resende Costa e de Helena Maria de Jesus, uma das
três ilhoas; seu tronco familiar migrado para Araxá, se tornou um
dos principais da região e alhures; o capitão Antônio da
Costa Pereira, tio materno de Ana Felizarda, era, à época, uma das
principais lideranças políticas da vila de Araxá, fazendeiro e
comerciante abastado. Em 1816, foi um dos líderes do movimento que
solicitava a emancipação do então julgado de Araxá, que à época
pertencia a província de Goiás. Parente do inconfidente José de
Resende Costa, bem como do Dr. Estevão Ribeiro de Resende, Marquês
de Valença, homem de confiança do governo português, ele foi
incumbido pelos demais líderes do movimento para ir ao Rio de
Janeiro para negociar o pleito com o governo central, com a ajuda da
influência dos mesmos. Como história social e genealogia andam
invariavelmente juntas, a elaboração da vida dos personagens é
necessária, para entendermos a complexa relação de compadrio
existente entre as principais famílias de Araxá nos anos de 1830 - essas
famílias, unidas através de casamentos e por interesses políticos
e econômicos, com o objetivo da manutenção do poder local formava
uma intrincada teia de alianças na defesa de seus interesses tanto
no âmbito local, provincial e na corte, onde mantinham
representantes com livre trânsito nas diversas esferas do poder
imperial. Na adversidade de um crime cometido por um membro de uma
delas, solidários, direta e indiretamente, participaram da trama
para inocentá-lo outras importantes e poderosas famílias, tais como
os José da Silva/Botelho, Afonso de Almeida, Gonçalves Pinheiro,
Martins Borges, só para citar apenas algumas. Pois bem, o capitão Antônio da Costa Pereira era casado com Ana
Luísa Carneiro de Mendonça, filha do pioneiro Bento Carneiro de
Mendonça e de Úrsula Ferreira da Cunha e irmã do poderoso coronel
João José Carneiro de Mendonça, um dos personagens mais
importantes, supostamente envolvido juntamente com o filho primogênito João Carneiro de Mendonça Franco, no assassinato de Manoel
Fernandes de Sampaio. Nesse contexto,
integrava a família Carneiro de Mendonça por casamento, o Dr.
Antônio Paulino Limpo de Abreu, cuja esposa vinha a ser filha do
coronel João José. Limpo de Abreu, português de nascimento,
formado em direito na Universidade de Coimbra, veio para o Brasil, e
quis o destino ser ele nomeado Ouvidor da então vila de Paracatu do
Príncipe, e lá, consorciou-se com Ana Luísa Carneiro de Mendonça, tornando-se membro da família. Eleito deputado geral do império, pela
província de Minas Gerais, representava a família na defesa de seus
interesses nas altas esferas do poder central. Ministro interino da
pasta da Justiça durante a regência do Marquês de Olinda em 1839,
nomeou o cunhado bacharel João Carneiro de Mendonça Franco juiz de
direito da vila de Araxá, e diante das repercussões negativas de seu ato, nomeou-o para a de Paracatu. O problema é que essas nomeações se deram exatamente na época em que o dito bacharel
respondia a uma revista crime, acusado de ter matado Manoel Fernandes
de Sampaio, talvez numa tentativa de dar-lhe “foro privilegiado”,
como se faz nos tempos atuais com os poderosos de agora. O ruído contrário foi enorme.
Recorte
de Jornal da época que ilustra a narrativa acima:
“Na
repartição da justiça os inconvenientes são ainda maiores, e
grave é a responsabilidade do ministro. O Sr. Limpo fez uma multidão
de nomeações, para satisfazer os ressentimentos do gabinete, ou
para acomodar afilhados. O sr Limpo tem a desfazer essas injustiças: mas como?Como, por exemplo, impedir que o sr. João
Carneiro de Mendonça, digno cunhado do ex-ministro da justiça
Paulino Limpo de Abreu, e por este despachado para o Arachá, onde
aliás se acha criminoso, vá escandalizar uma comarca, uma
província, o Brasil inteiro?” (O Sentinella da Monarchia, edição
do dia 30/03/1841, nº85).
Por
outro lado, o perfil genealógico e biográfico do principal
personagem envolvido no assassinato, torna-se imperativo, para
tentarmos entender o caso, a partir de um tronco dos Carneiro de
Mendonça: coronel João José Carneiro de Mendonça, filho de Bento
Carneiro de Mendonça e de Úrsula Ferreira da Cunha, nasceu em 1786
em São Francisco de Paula, termo de Oliveira; no início do século
dezenove, junto com o irmão Manoel, muda para a vila de Paracatu do
Príncipe, onde casam com duas irmãs, filhas de tradicional família
de lá, os Batista Roquete Franco. João José casa-se com Josefa
Maria Batista Roquete Franco, nascida na dita vila por volta de 1778.
Estabelecido em Paracatu, o casal gera os filhos, nascidos nas
décadas de 1810/1820, entre eles o mais velho, João Carneiro de
Mendonça Franco, nascido em 1806. No final dos anos de 1820, início
de 1830 a família muda em definitivo para Araxá, onde João José
Carneiro de Mendonça possuía propriedades rurais de grande porte; é
quando se desencadeia a série de acontecimentos negativos envolvendo
membros da família, culminando, em 1841, com a retirada do coronel para a província do Rio de
Janeiro, aonde adquire propriedades rurais, e com família para lá se
muda definitivamente. Ele morre em 03/03/1853 em Petrópolis; Dona
Josefa falece dois anos depois, em 17/11/1855. Dona Josefa está imortalizada como uma brasileira célebre, heroína (sic) da Revolução Liberal em Araxá - leiam o que escreveu o cônego Marinho sobre ela:
Nesse
ínterim, o primogênito João Carneiro de Mendonça Franco, entra na
Academia de Ciências Jurídicas e Sociais de São Paulo (Faculdade
de Direito do Largo de São Francisco), aonde forma-se bacharel em
direito no ano de 1834 retornando para a vila de Araxá; acreditamos
que ele estava sendo preparado pelo pai para seguir a carreira
política, primeiro por suas candidaturas a deputado, e segundo por suas renuncias a todas as nomeações a cargos no judiciário - as notícias de jornais da época ilustram a tese: “em dias de
julho de 1840, chegou do Rio de Janeiro o falecido Dr. João Carneiro
de Mendonça incumbido do plano de vencer a eleição a todo custo (Brasil, edição de 10/01/1849)”; “em 1836 é
nomeado e pede demissão antes de assumir ao cargo de juiz de direito de Cavalcante, província de Goiás, e disputa uma vaga na câmara federal, mas não é eleito. Em carta
datada de 25 de janeiro de 1837 postada na vila de Campanha do Rio
Verde, ele não aceita o honroso cargo com a justificativa que estava
encarregado da administração dos negócios da casa de seu pai”;“em 02/12/1840 é
agraciado por influência familiar, Cavaleiro da Ordem de Cristo e é eleito vereador da Câmara de Araxá.”; “em 1840 disputa as
eleições para deputado provincial mineiro, não sendo
eleito.”;“nomeado juiz de direito da vila de Araxá, gera polêmica no parlamento do império, sendo removido para a comarca de Paracatu, onde também
não toma posse; nomeado em 06/11/1841 para a vila de Santa Cruz, em Goiás, e
igualmente não assume o cargo, permanecendo em Araxá”;
“Joaquim Carneiro de Mendonça Franco assume chefia do grupo dito rebelde na Revolução Liberal de 1842
em Araxá. Na ocasião, coincidência ou não, morre em combate
contra os rebeldes, o tenente da Guarda Nacional Antônio do Amaral
Tenreiro, inimigo fidagal ou figadal, como queiram, do Dr. João
Carneiro de Mendonça Franco”.
Nota relevante (atualização em 25/07/2019): na ata de 20/11/1841, da Câmara de Vereadores de Paracatu, está anotado o trecho que se segue - " O senhor vereador Souza Gonçalves (João - grifo nosso) obtendo a palavra leu a seguinte indicação: não é desconhecida a Cãmara a tristíssima catástrofe, que teve lugar no dia 18 do corrente mês, tendo passado a eterna Glória o nosso digno magistrado o Senhor Doutor João Carneiro de Mendonça Franco...". Faleceu ele, portanto, no dia 18/11/1841 em Araxá.
Nota relevante (atualização em 25/07/2019): na ata de 20/11/1841, da Câmara de Vereadores de Paracatu, está anotado o trecho que se segue - " O senhor vereador Souza Gonçalves (João - grifo nosso) obtendo a palavra leu a seguinte indicação: não é desconhecida a Cãmara a tristíssima catástrofe, que teve lugar no dia 18 do corrente mês, tendo passado a eterna Glória o nosso digno magistrado o Senhor Doutor João Carneiro de Mendonça Franco...". Faleceu ele, portanto, no dia 18/11/1841 em Araxá.
A nomeação polêmica |
O
CRIME E A INSTRUÇÃO PROCESSUAL – AUTO DO CORPO DE DELITO
Nesta
fase a responsabilidade de instruir o processo ficava a cargo do Juiz
de Paz.
O
atentado: “na noite de 13 de junho de 1836, entre as sete e oito
horas da noite, em casa do capitão Jerônimo José da Silva¹,
estando presentes Francisco Machado de Moraes²,
Antônio Augusto de Melo³ e Manoel
Fernandes de Sampaio, para se divertirem ao jogo (provavelmente de
cartas), este último foi brutalmente assassinado – por uma janela
da casa defronte, do outro lado da rua, o dito Sampaio, com um tiro
de espingarda recebeu uma carga de treze bagos-de-chumbo grosso e uma
bala, caindo no chão já sem vida.”
Comentário marginal da história: o
dono da casa onde foi morto o Sampaio, capitão Jerônimo José da
Silva realçou a presença do deputado provincial capitão Joaquim Pimentel
Barbosa⁴, chegando da
Assembleia em Ouro Preto e de passagem para sua cidade, presenciou o
crime, dizendo horrorizado por um tão execrando delito.
¹Família José da Silva/Botelho;
²Idem;
³Natural da vila de Paracatu, radicado na vila de Araxá;
A
necrópsia:
Realizada
pelos peritos no dia 29/06/1836, na fazenda do falecido, descreve as
trajetórias dos projéteis e as lesões perpetradas pelos mesmos:
“Ao
examinar o cadáver, colocado sobre uma mesa, e ter levado treze
bagos-de-chumbo grosso na maçã do peito (sic) e uma bala que
penetrou abaixo da artéria do lado direito (sic) que varou a dita
bala sobre a pá (escápula) esquerda do dito cadáver".
Das
testemunhas:
O
Auto do Corpo de Delito continua com a oitiva das testemunhas, na
tentativa de esclarecer as circunstâncias do crime, bem como chegar
ao responsável ou responsáveis pelo assassinato e sua motivação.
As
narrativas ricas em detalhes nos depoimentos da maioria delas foram
em desfavor dos réus e fundamentaram a convicção de que o
mandatário do assassinato foi um certo Joaquim de Almeida Ramos, e o
mandante o bacharel João Carneiro de Mendonça, como veremos
adiante.
Nos
depoimentos, algumas testemunhas que estavam nos arredores onde ocorreu o
disparo da arma de fogo, disseram que só foi possível visualizar um
vulto alto e magro, se afastando do local, e que só podia ser o
executor do crime: “que o tiro foi dado por um vulto alto, magro,
rasgado de pernas e que este vulto em vista das circunstâncias não
foi outro, senão o réu acusado Joaquim de Almeida Ramos”; “que
o réu foi visto entrando na dita casa embaraçado (sic) com um
ponxo ou poncho (em desuso – antiga capa) de banho e debaixo desta
uma espingarda”. Em relação a Joaquim de Almeida Ramos, muitos
depoimentos foram decisivos na sua identificação como autor do
atentado criminoso, como o de Dona Maria Felisbina de Resende, mulher
de Rafael José de Araújo Pereira: disse que o réu Joaquim de Almeida Ramos
na noite daquele acontecimento apareceu na casa dela já bem tarde;
que o réu bastantemente assustado, e não querendo ver luz e que
nesta mesma ocasião a contara que tinha matado ou ferido o Sampaio,
relato repetido por outras testemunhas que estiveram com a informante
Maria Felisbina; Disse ainda a depoente que embora não tinha nada
contra ele, o apontava como o matador; os depoimentos de outras
testemunhas, como, por ex., Francisco Vaz da Costa e Antônio José
Alves de Araújo, vizinhos de Joaquim de Almeida Ramos e o próprio
sogro do assassino, o sargento José Joaquim da Silva foram
fundamentais para a sua identificação. Já a testemunha Celestino
Antônio Valasco ou Celestino José da Trindade, disse ter ouvido da
própria Maria Felisbina o relato já referido acima, bem como ter
presenciado e ouvido, estando defronte (sic) aquele réu contar ter
matado o Sampaio ao seu sogro José Joaquim da Silva; disse também
que quem falasse estava morto. Francisco Machado de Moraes, que
estava na casa aonde ocorreu a morte do Sampaio, cita os nomes de
João Carneiro, “Dona Ana Jacinta de São José”, e de um colar
de ouro, mas, não conseguimos identificar no contexto, o porque do
nome próprio de Dona Beja ser referido no depoimento da testemunha.
Por fim, outras testemunhas disseram que não sabiam, nada viram ou
sabiam por ouvir dizer.
O
acusado inicialmente negou todas as imputações a ele dirigidas,
dizendo que o que carregava era uma caixa de marmelada e não uma arma, mas diante das
acusações das testemunhas acabou confessando o delito: Joaquim de
Almeida Ramos disse ter recebido como recompensa, um moleque (seria
um escravo jovem?), um Burro, duzentos mil réis em dinheiro e um
colar de ouro (seria o relacionado a Dona Beja?).
Não
encontramos o depoimento do réu no documento em questão, mas, tão
somente frases soltas acerca da admissão da culpa dita pelo suspeito
do crime, depoimento este, que seria importantíssimo para se chegar
a motivação do crime. O réu acusado de executar o crime foi preso
na cadeia da vila de Araxá em 10/07/1837, onde aguardou o
julgamento.
Nota:
sobre o homem Joaquim de Almeida Ramos, pouco descobrimos sobre sua
vida pessoal: sabe-se que a época do crime, ele era casado com uma
filha do sargento José Joaquim da Silva.
A
maioria das testemunhas foram unânimes em apontar como mandante do
assassinato o bacharel Dr. João Carneiro de Mendonça Franco, já
biografado acima, e o jargão comum a todos elas era “que o povo
todo tem convicção que quem mandou matar foi o bacharel João
Carneiro.” “O povo todo sabe”. Portanto, o mandante Dr. João
Carneiro de Mendonça, e o mandatário Joaquim de Almeida Ramos; das
testemunhas, os depoimentos mais contundentes contra o dito Carneiro,
foi do seleiro Antônio do Amaral Tenreiro (lembram-se dele? Vide
acima), de Joaquim de Santana, Francisco Vaz da Costa e de Maria
Felisbina de Resende, transformada em informante por ser parente
próxima da viúva da vítima; A testemunha Tenreiro aparecera
dizendo havia uma ameaça, um cala-te boca = o mesmo que quem falasse
também havia de morrer, e diz não ter nenhuma dúvida de quem era o
mandante; Joaquim Santana, oficial de pedreiro, segundo outras
testemunhas, andava gritando pela via pública, gritava que quem
havia mandado matar ao Fernandes tinha sido o Bacharel João
Carneiro, e o confirmou em juízo; que João Carneiro estava na casa
de onde saiu o disparo, “tanto assim que, consta ter o mesmo
Bacharel (…) saindo as nove horas da noite com pouca diferença
atrás do matador”.
Assim,
várias circunstâncias formaram um indício. Vários indícios
formaram uma prova. É a teoria das provas.
O
Dr. João Carneiro de Mendonça esteve ausente/foragido durante toda
a instrução do processo, assim como no julgamento -
nas palavras dos acusadores ele poderia estar ausente do Império ou em
lugar não sabido em um crime que não se admitia fiança, segundo o
Código do Processo Criminal de então. Curiosamente, encontramos uma
carta originada da vila de Campanha, Minas Gerais, datada de
25/01/1837 escrita pelo réu, resumida na sua breve biografia
descrita acima (queira ver), época em que o processo contra ele
estava em pleno andamento, o que poderia caracterizar sua fuga. Foi
julgado à revelia.
Sobre
a motivação do crime, o advogado da família sugere ter a vítima sido assassinada devido a sua probidade, honestidade e zelo com a coisa
pública decorrentes dos cargos de governança que ocupou; em outra
vertente, encontramos uma referência em um jornal do Rio de Janeiro,
cujo editorial, diz ser o motivo do crime para se “facilitar um
adultério”, portanto de natureza passional. Não encontramos nenhum relato no processo, nomes de pessoas que poderiam estar implicados em caso de adultério, envolvendo o morto, notadamente o de Ana Jacinta de São José.
Lista
dos personagens do corpo judiciário que participaram do processo:
Juiz
de Direito – José Jorge Silva, irmão do Dr. Quintiliano José da
Silva, que foi presidente da província de Minas, e ele mesmo
deputado geral do Império;
Promotor
letrado – Antônio Pereira de Siqueira Júnior, lavrador;
Juiz
de Paz – Antônio Alves Barbosa (66) e Felisberto Manoel Teixeira
(31), negociantes;
Escrivães
– Joaquim Félix Rodrigues Fraga¹;
Quintiliano José dos Santos.
Advogados:
dos réus: Jerônimo Máximo de Nogueira Penido; da família da
vítima: Antônio da Costa Pinto Júnior.²
¹
natural da vila de Paracatu do Príncipe;
²
natural da vila de Paracatu do Príncipe.
O
JULGAMENTO E A SENTENÇA
Pela
leitura do recurso ao STJ (Supremo Tribunal de Justiça), vê-se que
o processo estava eivado de vícios e que o Doutor Juiz de Direito
não obedeceu ao rigor processual necessário para se chegar a um
desfecho satisfatório: por exemplo, não se cumpriu a regra de não
poder iniciar a sessão do júri sem que estejam presentes 48
jurados, aliás, o principal motivo da apelação à segunda
instância; jurados suspeitos e para não dizer peitados para
absolver o bacharel João Carneiro de Mendonça Franco; jurados
ausentes e com problemas de saúde não foram substituídos, nem
multados pela ausência como por ex., o cidadão José de Resende
Costa parente por afinidade da vítima, que havia se casado em
Paracatu, para onde se mudara definitivamente; no segundo conselho de
jurados, com número excessivo de membros (88), ocorreu a promiscuidade das relações entre alguns deles e
o réu mandante – jurados suspeitos, amigos, apaixonados pela causa
do apelado: o próprio pai coronel João Carneiro de Mendonça e o
tio Bento Carneiro de Mendonça compuseram o rol do dito conselho,
bem como outros parentes e amigos íntimos da família, tais como os Botelho e Afonso de Almeida; o advogado de acusação foi impedido
de expor seu libelo acusatório, e por fim, outros vícios menores,
mas, não menos importantes para o bem julgar.
Não
encontramos no bojo do documento os libelos de acusação e de
defesa.
O
julgamento se deu entre os dias 16 e 17 de novembro de 1837 e a
sentença do juiz foi sucinta: “Julgo de nenhum efeito a denúncia
dada contra o bacharel João Carneiro de Mendonça, confirmando ou
informado-me com a decisão dos jurados, digo com a decisão do júri.
Declaro haver matéria de acusação contra Joaquim de Almeida Ramos
o qual seja notificado para responder nesta dando-lhe cópia do
libelo – sala de sessões do júri aos dezessete de novembro de
1837. Dr. José Jorge da Silva.
De
acordo com o Código Criminal de 1832, o crime cometido tendo como
mandante o Dr. João Carneiro de Mendonça, e mandatário Joaquim de
Almeida Ramos, estava tipificado como de gravidade extrema e as penas
sugeridas no Código do Processo Criminal de 1832 eram as
máximas: galés perpétua e/ou de morte, penas estas
solicitadas pelo advogado de acusação. Nenhuma delas foi aplicada
no caso em questão: João Carneiro absolvido, e Joaquim de Almeida
Ramos condenado. No caso da condenação, não conseguimos descobrir
a tipificação do crime cometido pelo réu Joaquim de Almeida Ramos
e tampouco a dosimetria da reprimenda infringida ao apenado; fato é
que em 1865, ele vivia livre em Araxá. Dr. João Carneiro retornou
para a vila de Araxá, militando na política local e provincial, até
morrer precocemente em 1841.
O
RECURSO DE APELAÇÃO – REVISTA CRIME
O
documento em análise é um ato jurídico recursal, denominado de
Revista Crime, em apelação ao Superior Tribunal de Justiça do
Império (STJ). Este tipo de recurso exigia alguns requisitos básicos
derivados das decisões do juiz de primeira instância: a tipologia
do crime, como por exemplo, a não prisão do denunciado, e o crime
inafiançável, como era o caso do delito em estudo.
Na
apelação, os suplicantes pedem a anulação do processo devido a
vícios e falta de rigor processual já relatados em tópico
anterior, assim como novo julgamento e a redefinição das penas dos
acusados de serem os matadores de Manoel Fernandes de Sampaio.
Nele,
encontra-se o traslado dos autos
crimes com a descrição dos acontecimentos ocorridos na ocasião do
atentado, o Auto do Corpo de Delito, bem como a oitiva das
testemunhas, o julgamento e a sentença, assim como as teses da defesa
e da acusação junto ao Tribunal. Não sabemos se o processo
original foi transcrito na íntegra ou de forma resumida. A decisão
dos desembargadores do STJ só se deu em 1839 (vide notícia de
jornal), aceitando o recurso dos suplicantes Ana Felizarda de
Resende, a viúva, e seus irmãos José Pereira da Costa Guimarães e
Antônio da Costa Pereira Guimarães, obviamente,
cunhados da vítima. Naquele tempo, como nos tempos atuais, os processos
contra os poderosos em tribunais superiores dormitavam em alguma
gaveta do julgador por longos anos e a impunidade era a regra. E o
caso do Dr. João Carneiro de Mendonça não foi diferente: foi
protelado ao máximo, e seis anos depois do crime ainda não havia
sido julgada a apelação. Com a morte precoce do suposto mandante do
brutal assassinato de Manoel Fernandes de Sampaio, ocorrida em 18/11/1841, o processo foi naturalmente extinto.
CONJECTURAS
– FICÇÃO/REALIDADE
Não
foi possível encontrar nas entrelinhas das páginas do documento a
motivação para se cometer um crime torpe perpetrado contra Manoel
Fernandes de Sampaio, embora ele fosse conhecido entre seus pares
como um homem explosivo e às vezes violento em suas ações verbais.
No arrazoado do advogado de acusação, em um trecho disse ele: “A
vítima era pessoa honrada, correta e nos exercícios dos cargos
públicos e empregos do governo, onde a sua independência de caráter
era o único foral que agarrava, sem muito receio de errar e talvez
fora a causa de sua morte”. Infelizmente, não existe nos autos
nenhum elemento palpável para desenvolver a tese de crime político,
além da conjectura do advogado. Seria a motivação um crime
político ou a esperteza próprias dos advogados para desviar o foco
de um crime passional? Sim, porque na outra vertente das hipóteses
aventadas, o motivo do delito seria um crime passional que envolvia
um adultério, para facilitar a vida do adúltero (a) ou adúlteros.
Então se cometeu o assassinato. Como relatamos acima, em um momento
encontramos referência ao nome Ana Jacinta de São José e João
Carneiro de Mendonça no depoimento de uma testemunha, mas que não
levou a uma conexão causal, e que poderia ensejar o delito. Aí cabe
uma indagação: e Dona Beja? Ela poderia ser transportada para os
fatos da vida real? É possível que sim. Nesse caso podemos trazer
os personagens da ficção para vida real com seus nomes verdadeiros,
e indagarmos suas participações na trama que levaram a morte Manoel
Fernandes de Sampaio. Senão vejamos: o Bacharel João Carneiro de
Mendonça era solteiro, e Ana Jacinta de São José (Dona Beja)
igualmente o era , não havendo impedimento algum para um
relacionamento amoroso. Na ficção tanto Sampaio, homem casado,
quanto Carneiro foram amantes dela, tendo cada um, uma filha destes
relacionamentos. A Teresa, tida como filha do Sampaio na ficção, já
ficou demonstrada ser filha do padre Francisco José da Silva Botelho; quanto a
Joana ainda há controvérsias. Seria na vida real, assim como na
ficção, Manoel Fernandes de Sampaio amante de Beja? Caso seja
verdadeira esta hipótese, João Carneiro o teria matado para se
livrar de um rival incomodo ou para proteger alguém de sua íntima
relação, desembaraçando o relacionamento dos amantes. A pergunta
que não quer calar: seria este seu protegido, seu pai, o coronel
João José Carneiro de Mendonça, o verdadeiro amante de Ana Jacinta
de São José, a Dona Beja? Ou o era outra mulher? O fato é que dois
anos depois, Dona Beja tem a filha Joana, que alguns dizem ser o pai
o coronel e outros o seu filho João; seria o coronel pai ou avô da
menina? No registro de batismo da criança recém-nascida figura como
padrinho o dito coronel João José, sem especificar se havia algum
grau de parentesco: não era incomum “a inclusão do nome do
suposto pai, como padrinho no registro de batismo da criança,
conhecida estratégia usada para dissimularem-se paternidades
espúrias.”
Ainda
indagando, seria Ana felizarda de Rezende a adúltera em questão? É
improvável ela ter sido amante do bacharel João Carneiro de
Mendonça Franco, até pela veemência com que ela acusou-o de ser o
matador de seu marido. Seria ela amante do pai dele, o coronel, e este teria mandado eliminar a vítima para
facilitar seu romance com sua jovem esposa? Intrigante e chama a
atenção a solicitude do coronel na ocasião do inventário do
finado Sampaio, que contava com a confiança da viúva, que o nomeou
avaliador dos bens deixados pelo marido, bem como o fato de ele ser
testemunha na obtenção da tutela de seus filhos. Contudo um irmão
de Ana Felizarda, Antônio da Costa Pereira Guimarães, faz alusão a
ruptura com os Carneiro de Mendonça, raiz da morte de Sampaio.
Em
uma carta coletada pela historiadora Rosa Maria Spinoso de Montandon, provavelmente de 1842, escrita por Dona Josefa Batista
Roquete Franco, mulher do coronel e endereçada ao seu genro, o Dr.
Paulino Limpo de Abreu, homem poderoso na política do Império, e
que havia sido ouvidor na vila de Paracatu do Príncipe na década de
1820, ela queixa das suas desgraças sofridas durante 9 anos, fala em
mulher danada e que Júlia (seria sua filha Júlia Carneiro de
Mendonça?) sabia. Não seria outro indício da participação do seu
marido na trama? Será que a partida definitiva do coronel João
Carneiro de Mendonça para a província do Rio de Janeiro em 1841,
não seria mais uma pista do apartamento da amante diante dos
trágicos acontecimentos consecutivos? Ou os adúlteros seriam outras
pessoas ainda ocultos pela falta de documentos?
Conjecturas,
apenas.
Por
fim, veio a Revolução Liberal de 1842, que eclodiu em grande parte
das comarcas mineiras. Em Araxá, os rebeldes eram chefiados Carneiro de Mendonça Franco e pelos Botelhos, que acompanhados de
considerável contingente de seguidores, todos armados, tentaram
invadir e tomar a vila de assalto para assumir o poder local. Nos
combates ocorridos, aconteceu a morte do Tenente da Guarda Nacional
Antônio do Amaral Tenreiro, por quem o Dr. João Carneiro de
Mendonça Franco nutriu ódio mortal – seria coincidência? Para
não ser preso, Joaquim Carneiro de Mendonça foi acoitado na fazenda do coronel
Fortunato José da Silva Botelho.
A
morte de Tenreiro ficou no plano de combate heroico em defesa da legalidade, sem
mais repercussão.
Com
a cessação dos acontecimentos na vila de Araxá, e a morte do Dr. João
Carneiro de Mendonça, esta família desapareceu de Araxá, radicando em outras localidades de Minas, na província do Rio de Janeiro e em São Paulo.
CONCLUSÃO
Este
ensaio é um exercício tentativo, não terminativo, por não ser
possível responder a muitos quês e porquês do trágico assassínio.
O documento apresenta na maioria de seu conteúdo, páginas com tinta
permeada, desbotadas e palavras soltas dificultando substancialmente
a leitura.
Este
crime, supostamente
tendo como mandante o bacharel João Carneiro de Mendonça, que
teve começo, meio,
mas não
teve fim, porque
não transitou em julgado, em
decorrência da
lentidão do STJ ao julgar o recurso interposto pelos apelantes, no
caso, a família da vítima, bem
como ao fato
relevante do
falecimento do acusado, e
que levou à extinção do processo
poderia, na
opinião de leigo, ser tipificado de acordo com a teoria do domínio
do fato, que, claro,
não existia evidentemente naquela época e muito em voga nos dias
atuais: segundo Claus Roxin, que enxergava que o elemento
diferenciador entre autor e partícipe estaria no domínio da ação,
sendo, pois, autor aquele que assume o protagonismo da realização
típica – logo, autor é aquele que pratica os elementos do tipo
dependendo apenas de si e de seu atuar. Porém, além dessa hipótese,
Roxin vislumbrou outras duas possibilidades de se “dominar o fato”.
Citamos uma delas com
a qual conjecturamos como
plausível no caso em questão:
o domínio
da vontade, situação
na qual o autor da conduta não a pratica de mão própria, mas, sim,
por meio da utilização de outro sujeito, que atua em erro ou em
estado de não culpabilidade, sendo o típico caso do “homem de
trás”.
Finalmente,
partindo da premissa que o povo é sábio, e que o “povo todo sabe”
que quem mandou matar foi o Dr. João Carneiro de Mendonça, logo,
parece ter sido ele o assassino mandante
do fazendeiro Manoel Fernandes de Sampaio.
E arrematando, Manoel Fernandes de Sampaio morreu matado; o Dr. João Carneiro de Mendonça Franco, morreu seis anos depois, de causa desconhecida até agora; Ana Felizarda e Dona Beja, mudaram de armas e bagagens para Bagagem (atual Estrela do Sul); Joaquim de Almeida Ramos, viveu em liberdade em Araxá.
E arrematando, Manoel Fernandes de Sampaio morreu matado; o Dr. João Carneiro de Mendonça Franco, morreu seis anos depois, de causa desconhecida até agora; Ana Felizarda e Dona Beja, mudaram de armas e bagagens para Bagagem (atual Estrela do Sul); Joaquim de Almeida Ramos, viveu em liberdade em Araxá.
Oxalá
surja outros documentos elucidativos.
ADENDO
ADENDO
Imagens
ilustrativas do processo e de jornais da época:
Jornal Brasil 1841 |
Jornal Brasil - 1841 |
Capa do processo |
Apelante e apelado |
Tutora dos filhos |
Fac-símile 1 |
Fac-símile 2 |
Fac-símile 3 |
Fac-símile 4 |
Rol dos jurados |
Fontes:
1
Arquivo nacional do Brasil - Fundo/Coleção:
Supremo Tribunal de Justiça – BU – Apelação/homicídio – nº
913 – maço: 61, partes Ana Felizarda de Resende e João Carneiro
de Mendonça (BR ANRIO BU.0.RCR.66.
2
Fontes de Apoio – secundárias
2.1
Montandon, Rosa Maria Spinoso de. Dona Beja: Desvendando o Mito,
editora Edufu, 2004;
2.2
Projeto Compartilhar – Família Resende Costa;
2.3
Hemeroteca da Biblioteca Nacional Digital – jornais de época.
legal o blog minha familia é toda fróes e eu não sabia a origem , parabens
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