Pular para o conteúdo principal

OS IMPOSTOS NA PARACATU COLONIAL

Por José Aluísio Botelho

Ontem como hoje, a voracidade do estado para arrecadar cada vez mais com o objetivo de cobrir suas despesas perdulárias, tributando o setor produtivo e os cidadãos com uma parafernália de impostos e taxas, criando um modelo que nenhum governante brasileiro conseguiu ou não quis modificar, superalimentando o estado à custa de quem trabalha. No Brasil colônia, também a criatividade para arrecadar não furtava a regra. Na época já existiam as contribuições voluntárias, como por exemplo, para pagar o dote das princesas na ocasião de seus casamentos; o subsídio, dito literário, para remunerar os professores e o custeio do ensino público, que incidia sobre a carne e a aguardente. Essa arrecadação era precária, assim como o salário dos professores, que ficavam muito tempo sem receber e eram muito baixos; o dízimo, cuja taxação era de 10% sobre os bens das pessoas e também sobre a produção, e que era a maior fonte de renda da Coroa portuguesa. Também havia o quinto, que taxava em 20% de toda a produção mineral (principalmente ouro, prata e diamantes) e por fim o direito de entradas, estabelecido em 1711, e era pago de acordo com o peso das mercadorias que entravam nas capitanias, bem como das que circulavam dentro da mesma capitania e ao redor das vilas. Para isso existiam os Registros de Contagens, implacáveis na arrecadação desse imposto de entrada, objeto deste artigo.
Minas Gerais foi a “menina dos olhos” da Coroa portuguesa durante o período colonial, pois grande parte da arrecadação provinha dessa região e a Vila de Paracatu do Príncipe não fugiu à regra. Além dos impostos cobrados na própria Vila, ela era cercada por uma verdadeira muralha alfandegária, com a existência de cinco Registros (o equivalente hoje aos postos ou barreiras fiscais), denominados de Olhos D’água, em distância de meia légua, o de Nazareth, a uma légua de distância e os de Santa Izabel, de São Luiz e de Santo Antônio em distância de duas léguas do lugar.
Na Revista do Arquivo Público Mineiro, encontramos uma interessante e importante carta endereçada ao então Príncipe Regente de Portugal e futuro Rei Dom João VI, remetida pelo ouvidor José Gregório de Moraes Navarro, nomeado pela rainha Dona Maria I em 1799, para criar e instalar a Vila de Paracatu do Príncipe, que ilustra bem a questão (Fac-símile em anexo).
Diz o ouvidor: “Nas duas viagens que fiz de Sabará a esta Vila de Paracatu do Príncipe, pela Picada de Goiás e pela estrada de Curvelo, tive ocasião de examinar, com meus próprios olhos, todo esse vasto sertão, para formalizar eu mesmo o mapa do novo distrito da Vila que tive a honra de criar e achei grande o território, quase deserto, apesar dos muitos rios, que o banham e o fertilizam, e das grandes campinas que pela bondade, e pela largueza de suas pastagens, podiam fazer renascer a riqueza e a fortuna só na criação de rebanhos.” “Este é Senhor, o estado atual do sertão: muito pequena população, quase nenhum comércio, nenhuma agricultura. Não me foi difícil descobrir a causa de fenômenos tão estranhos.”Segue o ouvidor explanando ao Soberano o que viu ocularmente e ouviu dos poucos moradores da região e aponta a causa verdadeira e principal da estagnação econômica da Vila:
“Os impostos excessivos, cobrados nos Registros de Contagens, que eram cobrados, não só dos gêneros que entram de outras Capitanias, mas também dos que vem desta mesma Capitania e dos que fabricam no termo desta mesma Vila”. Relata as dificuldades de se criar gado, devido ao tempo de engorda e a conseqüente taxação absurda quando da venda, tanto para fora da Capitania quanto na própria Vila, bem como dos demais gêneros de comércio, e conclui: “Eis aqui, a falta de população, de agricultura e de comércio no Sertão”. Como sugestão ao Rei, pondera o ouvidor: “Ponham os Registros das Contagens nas extremas da Capitania, cobrem-se os direitos dos gêneros que entrarem das outras Capitanias confinantes; mas haja franqueza e liberdade de comércio entre os moradores de uma mesma Capitania, que logo verá V.E. crescer a população, aumentar o comércio, e promover a agricultura”. E “que talvez receba a Fazenda Real, dobrados interesses”. E o mais emblemático no seu diagnóstico, ele ressalta: “mas supondo ainda que este cálculo falhe na prática, ou que há alguma razão política e oculta para se não mudarem os Registros para as extremas da Capitania, e por conseqüência deixando de cobrar-se os direitos de gêneros fabricados nesta mesma Capitania, vem a perder a Fazenda Real todos esses interesses, visto que o imposto nos gêneros fabricados nesta mesma Capitania, é da causa única, e principal da falta de população, de agricultura, e de comércio nesses vastíssimos sertões, que se acham quase desertos”.
Segue o Ouvidor Navarro discorrendo sobre a conveniência de se mudarem os Registros para as extremas da capitania, e tentando fazer ver ao Rei que “é melhor sofrer dois ou três anos a falta daquele rendimento incerto do Direito de Entradas, para depois se arrecadarem muitas vezes dobrados, e com mais certeza e segurança, senão das entradas, de outros ramos muito mais consideráveis”. E finaliza: “Eu por eles e em seu nome suplico a V.A. esta graça, que parece de razão e de justiça. Vossa Alteza mandará o que for servido. Paracatu do Príncipe, 27 de setembro de 1803. José Gregório de Moraes Navarro”.
É o documento inusitado porque é incomum depararmos com um governante, nomeado pela rainha para criar e instalar a Vila de Paracatu e, por conseguinte homem de inteira confiança do Governo português, feito Fidalgo da Casa Real com Brasão de Armas, sair em defesa da população contra os efeitos abusivos dos impostos cobrados pelo Estado português, impedindo o pleno desenvolvimento da comunidade em que vivia e da região como um todo, e que era sem dúvida um homem a frente de seu tempo. Entretanto ele não obteve seu intento, pois os Registros de Entradas só foram extintos com a independência em 1822.
É importante quando analisamos a voracidade do Estado brasileiro ao longo desses dois séculos, sempre no sentido de arrecadar cada vez mais para cobrir seus gastos predatórios, em detrimento do desenvolvimento do país e também por ser um documento atual, quando nos defrontamos nos dias de hoje com uma carga tributária de até 40% da renda nacional, e ouvimos do próprio Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva o disparate de que a CPMF é um imposto “justo e fiscalizador”.
Nota: A grafia original do teor da carta foi atualizada para melhor compreensão do texto.
Fonte: Revista do Arquivo Público Mineiro, CD-ROM nº.03, vol.17, 1912.
Brasília, setembro de 2007.

Comentários

Postagens mais visitadas

PIONEIROS DO ARRAIAL DO OURO 22 - MENDES TEIXEIRA

Por José Aluísio Botelho e Eduardo Rocha Sobrenome originário do Concelho de Amarante, distrito do Porto. João Mendes Teixeira, da freguesia de Santa Maria de Fregim, casado em 13/04/1722 na igreja de São João Batista de Louredo, com Joana Teixeira, natural desta freguesia de  Louredo, ambas do Concelho de Amarante, distrito do Porto. Igreja de Louredo - Casamento dos pais Tiveram, dentre outros, o filho João Mendes Teixeira, que veio para as Minas do Paracatu, onde casou com Joana da Costa da Conceição, natural da freguesia de Santo Antônio do Urubu, Bispado da Bahia, filha de Manoel de Sousa Luciano e de Luciana da Costa, também naturais dali. As minas de ouro do pioneiro A descendência 1 João Mendes Teixeira e Joana da Costa da Conceição, tiveram os filhos, nascidos e batizados na capela do arraial de São Sebastião, da freguesia de Santo Antonio da Manga das Minas do Paracatu, que descobri: 1.1 Antônio Mendes Teixeira, batizado em setembro d...

DONA BEJA E AS DUAS MORTES DE MANOEL FERNANDES DE SAMPAIO

Por José Aluísio Botelho A história que contaremos é baseada em fatos, extraídos de um documento oficial relativo a um processo criminal que trata de um assassinato ocorrido na vila de Araxá em 1836. O crime repercutiu no parlamento do império no Rio de Janeiro, provocando debates acalorados entre os opositores do deputado e ex-ministro da justiça, cunhado do acusado, como se verá adiante. Muitos podem perguntar porque um blog especializado em genealogia paracatuense, está a publicar uma crônica fora do contexto? A publicação deste texto no blog se dá por dois motivos relevantes: primeiro, pela importância do documento, ora localizado, para a história de Araxá como contraponto a uma colossal obra de ficção sobre a personagem e o mito Dona Beja, que ultrapassou suas fronteiras se tornando de conhecimento nacional. Em segundo lugar, porque um dos protagonistas de toda a trama na vida real era natural de Paracatu, e, portanto, de interesse para a genealogia paracatuense, membr...

REIS CALÇADO - UMA FAMÍLIA JUDIA NA PARACATU DO SÉCULO XVIII

Por José Aluísio Botelho  Eduardo Rocha Mauro Cézar da Silv a Neiva   Família miscigenada, de origem cristã nova pela linha agnata originária do Ceará . Pois  bem, para o arraial de São Luiz e Santana das Minas do Paracatu provieram  os irmãos Alexandre José dos Reis Calçado e Antônio Rodrigues dos Reis Calçado, naturais da freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Acaracu (atual Acaraú), termo de Aracati, Ceará, filhos naturais do capitão Gaspar Rodrigues dos Reis Calçado, natural do Recife, capitania de Pernambuco, e de Luzia Maria da Rocha, mulher solteira, escrava que foi do mesmo capitão Gaspar dos Reis Calçado , natural da freguesia de Acaracu (Acaraú); Alexandre José, objeto de nosso estudo, nascido em 1764, casou por volta de 178 5 , com Luzia Rodrigues de Oliveira, natural do arraial de Paracatu, falecida em 04/07/1837, filha de Antônio Rodrigues de Oliveira e de Ana Rodrigues de Araújo. Viveu do lucro de suas fazendas, notadamente da loca...

O CORONEL MANOEL FERREIRA ALBERNAZ E SEUS DESCENDENTES

Por Eduardo Rocha Mauro Cézar da Silva Neiva Colaborou José Aluísio Botelho (Última atualização em 23/09/2024: 1 A família inicial 2 Outros Albernazes, in fine). Família iniciada em Paracatu na era de 1830, quando lá se estabeleceu o alferes/capitão Manoel Ferreira Albernaz, vindo da região de Aiuruoca, sul de Minas, com esposa e filhos, adquirindo a fazenda da Capetinga. Manoel Ferreira Albernaz, o velho (vamos chamá-lo assim), era natural de Taubaté, São Paulo, onde nasceu em 1780, pouco mais (declarou 49 anos em 1832, branco, negociante em processo matrimonial no Porto do Turvo, onde era morador). Tem ascendência ainda ignorada, embora se possa afirmar ser ele descendente do mestre de campo Sebastião Ferreira Albernaz. Casou na capela de Santana do Garambéu, termo de Barbacena, porém ligado ao Turvo (30 km), com Mariana Victória de Jesus, por volta de 1810. Mariana Vitória de Jesus, nascida e batizada na capela de Santana do Garambéu,  filha de Vitoriano Moreira de Castil...

NOTAS GENEALÓGICAS - AQUINO E MOURA

Por José Aluísio Botelho  Eduardo Rocha 1 Alferes Thomaz de Aquino de Moura, nascido em 07/03/1827 e falecido em 05/07/1902 em Paracatu; exerceu o comércio e a profissão de ourives; Nota1: Thomaz de Aquino e Moura aparece em documentos por nós consultados referido como Thomaz de Aquino e Moura Brochado. Casou em 08/10/849 com Jacinta Joaquina de Santana, nascida em 1831 e falecida em 30/10/1897; Nota2: o casal, filhos de pais incógnitos, foi exposto em casa de Dona Maria de Moura Brochado, mulher solteira, que os criou e educou. Inventário de Jacinta: 1ª Vara cx. I-16. Filhos:  1.1 Major Antônio de Aquino e Moura, nascido em 1852 e falecido em 14/01/1937 (?) em Paracatu; com Teodora Pinho Costa, natural de Araxá, filha do alferes Manoel Joaquim da Costa e de Maria Antônia de Pinho, teve: 1.1.1 Antonina Aquino Neiva, nascida em 19/11/1891 e falecida em 19/03/1978; foi casada com o capitão Manoel (Maneco) da Silva Neiva; filhos: 1.1.1.1 Antônio Teodoro da Silva...

COLETÂNEA OLÍMPIO MICHAEL GONZAGA (ATUALIZAÇÕES)

POR JOSÉ ALUÍSIO BOTELHO (Extraído do manuscrito ‘Lendas do Brasil Central) Introdução Editorial Os textos que o leitor tem agora em mãos representam mais que simples registros de histórias: são fragmentos da memória cultural do Brasil Central. Com este s textos , resgatamos uma parte significativa da produção literária de Ol í mpio Gonzaga , autor paracatuense cuja voz, por vezes esquecida, ecoa com vigor nas linhas que compôs em seu manuscrito inédito Lendas do Brasil Central . Essas crônicas, apresentadas aqui tal como foram redigidas — preservando sua grafia original e livre de revisões ortográficas e gramaticais — revelam um autor intuitivo, movido pela oralidade popular, pela imaginação e por uma visão muito própria da história regional. Em sua escrita, Gonzaga mistura realidade e ficção, personagens verídicos e imaginários, criando um mosaico narrativo marcado tanto por encantamento quanto por lapsos históricos e estilísticos. Nosso papel, ao trazer esses textos ao públic...