POR JOSÉ ALUÍSIO BOTELHO
CONTEXTO HISTÓRICO
Testamento registrado em 1827, reflete as práticas religiosas, sociais e econômicas da época. Melchior (ou Belchior) José de Campos era um homem bruto do sertão situado nos fundos da Capitania de Minas Gerais, morador que foi no vão do rio Urucuia, então comarca de Paracatu, que abarcava uma extensa região de grandes latifúndios de pecuária extensiva, relativamente desabitada, e abrangia os termos da Vila Risonha de São Romão (belo nome), Morrinhos (Arinos), Vila de Buritis com divisa com a Vila dos Couros (Formosa), Capitania de Goiás.
O documento nos mostra sobre as relações familiares, o uso de mão de obra escrava (fábrica de escravos: no decorrer do inventário há a citação do escravo reprodutor) e a estrutura patrimonial da época, assim como a influência da religião católica nos rituais de morte e distribuição da herança, características da sociedade mineira do século XVIII e XIX. Revela, ainda, a estrutura de uma sociedade colonial onde a religião, o sistema de heranças e as práticas econômicas estavam profundamente interligados. Através da extensão das pesquisas, vimos como o personagem em questão se tornou um homem rico às custas do patrimônio da esposa e companheira de maneira vil e desonesta.
TESTAMENTO (transcrição na grafia atual)
Profissão de fé – Em nome da Santíssima Trindade Padre Filho Espírito Santo três Pessoas distintas e um Deus Verdadeiro.
Saibam quantos este Instrumento de testamento virem que sendo no Ano de Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil e oitocentos e vinte sete aos cinco dias do mês de outubro do dito ano eu Melchior José de Campos estando de perfeito juízo e entendimento que deus foi servido dar-me e estando gravemente enfermo de cama temendo-me da morte que a todos é natural e querendo salvar-me faço e ordeno o meu testamento de forma e maneira seguinte: encomendo minha alma a Santíssima Trindade que a criou e rogo ao Eterno Pai pelos santíssimos merecimentos da Paixão e morte de seu unigênito filho a queira receber na sua Santa Glória quando deste mundo partir e ao Santo do meu Nome ao Anjo de minha guarda e a Santíssima Virgem, e a todos os mais Santos da Corte Celestial queiram ser meus advogados ante a Divina Majestade para a Salvação de minha alma porque como verdadeiro Cristão protesto viver e morrer na Santa fé Católica.
Naturalidade e casamento: declaro que sou natural e batizado na freguesia de Minas Novas do Fanado, Arcebispado da Bahia, filho legítimo do Capitão-mor José Gonçalves de Sirqueira e Dona Ana de Campos, já falecidos. Declaro que fui casado com Dona Ana Joaquina de Santo André, hoje falecida por Carta de Meação conforme o estilo do Império do Brasil e de cujo matrimônio não tive filho algum, nem antes, nem depois que por direito me haja de suceder como também no estado de solteiro. Declaro que depois que querelei da finada minha mulher, nunca mais me juntei com ela até que Deus a levou.
Herdeiros: declaro que depois de cumpridas minhas disposições adiante declaradas instituo no remanescente de meus bens por meus únicos e universais herdeiros a meu sobrinho o Tenente Ignácio de Oliveira Campos e meu afilhado Melchior José de Campos Castelo Branco, filho do sobredito meu sobrinho, aquele presentemente morador no Cotovelo (fazenda de Inácio) e este morador na minha casa e fazenda denominada São Miguel do termo da Vila de Paracatu do Príncipe.
Testamenteiros: peço em primeiro lugar ao senhor Tenente Ignácio de Oliveira Campos, em segundo lugar a meu afilhado Melchior José de Campos Castelo Branco e em terceiro lugar ao senhor Antônio Joaquim Estrela que por serviço de Deus e por me fazerem mercê queiram aceitar este meu testamento pela ordem com que vão nomeados para que todos e a cada individualmente constituo por meus bastantes Procuradores, Tutores, Curadores e Administradores dos meus bens a respeito da arrecadação e disposições dos quais é minha intenção conceder-lhes os mais amplos poderes que em direito posso, e para dar contas deste meu testamento concedo o espaço de quatro anos e se mais necessário for o senhor Juiz da conta lhe concederá de forma que comodamente possa fazer.
Patrimônio: declaro que os bens que possuo são quatro fazendas de Criar gado Vacum e Cavalar denominadas Santa Maria, Ipueira, São Miguel e Barriguda com fábrica de escravos de ambos os sexos, gados, éguas, cavalos e todos os mais acessórios que por meu falecimento se acharem. Declaro que os sufrágios para minha alma sejam cumpridos logo depois de meu falecimento pelo Reverendo Pároco onde for o meu falecimento de que muito rogo a meu sobrinho herdeiro e testamenteiro assim cumpra. Os sufrágios são só seguintes: Duzentas missas de esmola de dez tostões cada uma em louvor e honra da Sacratíssima Paixão e Morte de meu senhor Jesus Cristo para que banhada a minha alma em seu preciosíssimo sangue possa parecer purificada de todas as manchas de minhas culpas perante o Divino Tribunal. Outras duzentas de igual esmola de dez tostões em louvor e honra de Maria Santíssima minha Mãe e Senhora para que entrepondo o seu Poderoso Patrocínio para que com o seu Benditíssimo Filho, me alcance perdão e salvação todas aplicadas por sufrágio de minha alma. Declaro que depois de meu falecimento o meu testamenteiro passará carta de liberdade às minhas escravas Felícia parda, Custódia parda, e seu filho Miguel, Pulquéria parda, Martiniana parda, Eliziário pardo, ficando esta verba servido de vigor para seu inteiro valimento. Deixo mais duzentas missas de esmola do costume que são seiscentos reis cada uma a saber: cem missas pela alma do falecido meu pai e outras cem pela alma da falecida minha mãe. Declaro que deixo uma escrava de nome Joana Crioula para as minhas afilhadas, filha legítimas de Domiciano Antônio de Oliveira. Declaro que tenho conta (dívida) com Esméria Rosária da Conceição e meu testamenteiro não duvidará de coisa alguma. Declaro que ao presente nada devo senão o que constar de alguns créditos, isso mesmo muito pouco, porém se aparecer alguma pessoa fidedigna que justifique verbalmente para se evitar contas que lhe sou devedor de alguma módica quantia declarando individualmente a espécie e origem da dívida perante pessoa legítima que lhe deferira juramento meu testamenteiro pague sem mais litígio de justiça. Declaro que o que se me deve constar de créditos e papeis pelos quais meu testamenteiro se regerá. E nesta forma hei por findo e acabado este meu testamento e por ele revogo outro qualquer que antes haja feito, como também todas as cédulas e codicilos anteriores por que somente este valha e por que também é minha intenção conformar-me com as leis do Império e quando haja alguma cláusula irritante nelas aí por não escrita para que fiquem valendo em tudo e por tudo conforme melhor modo de direito e rogo as justiças de Sua Majestade Imperial o cumpram e façam cumprir inteiramente como nele se contém e declara suprindo-lhes todas as cláusulas necessárias a sua validade para cujo fim as hei por expressar declaradas, O testamento foi escrito por Antônio Fernandes de Macedo conforme eu mesmo havia ditado e assinei, Melchior José de Campos. 06/10/1827.
DIGRESSÃO
Belchior José de Campos
Membro da família Oliveira Campos, irmão que foi pelo lado materno do Mestre de Campo Inácio de Oliveira Campos, da Casa do Pompéu, nascido em Minas Novas do Fanado, localidade do norte de Minas, que à época, recebeu forte aporte de cristãos-novos que lá se estabeleceram: o próprio nome Fanado, pelo seu significado relacionado a circuncisão, nos remete aos judeus. Aliás, também o sobrenome do seu pai indica a assertiva, pois Sirqueira (Siqueira/Cerqueira/Sequeira) é um apelido reconhecido como de origem judaica. Tudo indica que ele migrou, na segunda metade do século dezoito, para a então vasta região de Paracatu, com seu irmão Antônio de Oliveira Campos, primitivo dono das fazendas dos Campos na região, como se pode ler no codicilo do Mestre de Campo Inácio de Oliveira Campos, datado de 24/03/1798: “declaro que por falecimento de meu irmão Antônio de Oliveira Campos me ficou pertencendo as fazendas do Paracatu…”.
Melchior ou Belchior José de Campos, tornou-se um poderoso coronel do sertão do Urucuia, após uma vida pregressa marginal, como veremos adiante.
Ana Joaquina de Santo André
Diante do documento por nós compulsado, consideramos a importância de discorrer sobre a vida de Ana Joaquina de Santo André, mesmo que de maneira precária e superficial, para mostrar a situação da mulher/esposa no contexto da época em que viveram. Casada com um homem bruto, desonesto e arbitrário que se apoderou de todos os seus bens de raiz, mas que fazia parte daquela importante família Campos, originária da Bahia, ela teve que sair do convívio do marido através da fuga, vítima de maus tratos e até ameaças de morte e tentar reivindicar seus direitos na justiça de então, amplamente favorável ao sistema patriarcal, onde a mulher era a fêmea responsável pela procriação e dos cuidados domésticos.
Natural do Vão do Paranã, termo da Vila dos Couros, atual Formosa, Goiás, filha legítima do Capitão Manuel Nunes Pinto e de Bárbara Correia da Cruz, casal de posses e abastados fazendeiros da região, falecidos precocemente; tutelada pela avó materna foi dada em casamento, ainda menina, com 10 anos e nove meses, segundo seu relato judicial, com Melchior José de Campos, então um jovem aventureiro em busca de ascensão econômica e social a qualquer custo. O casamento se tornou litigioso ao longo do tempo, como mostram alguns trechos de um requerimento por nós compilados.
“Requerimento: Prostrada perante o régio trono de V.A.R cheia da maior humildade se prostra a miserável D. Ana Joaquina de Santo André, por desgraça sua, mulher de Belchior José de Campos, moradora no distrito de São Romão, fundos dos sertões da Capitania de Minas Gerais do Brasil, aflita, sem amparo, nem abrigo pede Justiça, já que aquele tem a vê corrompida com seu próprio cabedal e para mostrar, representa o seguinte: dirigido a S.A.R através do secretário de Estado dos Negócios da Marinha, Domínios Ultramarinos, de 20 de junho de 1802, com os documentos que o acompanharam, queixava a suplicante Ana Joaquina de Santo André, moradora no Distrito de São Romão, Capitania de Minas Gerais, da má conduta de seu Marido Belchior José de Campos, arguindo-a falsamente de crimes e ultrajes, só a fim de dissipar, vender e desfrutar dos bens da suplicante. Órfã de pai e mãe, recolheu à tutela de uma avó (em 1763, foi tutelada por sua avó materna, Dona Florência Correia das Neves Gomes, viúva do Capitão Francisco Gomes Ferreira, mulher rica e abastada – grifo nosso). Casou a suplicante com dez anos e nove meses, tempo em que não tinha escolha, nem livre alvedrio, vendo-se o marido passar de extremada miséria ao da abundância; indo viver nos interiores do sertão, passou a sofrer com um marido cuja conduta e amorosos delitos são constantes naquele sertão. Não tendo filhos no casamento, o marido passou a acusá-la de adúltera e outros insultos, inclusive ameaças de assassiná-la, a fim de empossar seus bens, o que se concretizou, delegando a ela uma parte do patrimônio e alguns tostões para seus alimentos”.
Falecendo Dona Ana Joaquina, o ex-marido arrematou na praça de Sabará os bens de sua meação, avaliados em 3:293$840.
O afilhado
Sobre Belchior José de Campos de Abreu, nascido cerca de 1817 (tinha onze anos em 1827), sabemos se um dos filhos do tenente Inácio de oliveira Campos Filho e de Bárbara Umbelina da Silva e Castro, afilhado do seu tio-avô Capitão Belchior José de Campos e por ele criado até sua morte, na fazenda de São Miguel, foi instituído juntamente com seu pai, herdeiros dos bens do capitão. Em 1846, já casado com sua prima Antônia Carolina Ferreira da Silva, filha do coronel Jacinto Álvares da Silva, de Pitangui, e de Maria Carolina de Sá e Castro, Belchior José de campos e Abreu faleceu precocemente e é inventariado em Pitangui com juízo de deprecada (carta precatória) para Paracatu, sendo seus herdeiros a esposa e os filhos Maria Belchiorina e um filho post-mortem, cujo paradeiro é desconhecido.
Fontes:
Projeto Resgate - Minas Gerais (1680-1832) - DocReader Web
(AHU_ACL_CU_011, Cx. 164\Doc. 15 (1))
Projeto Resgate - Goiás (1731-1822) - DocReader Web
AHU_ACL_CU_008, Cx. 19\Doc. 1172 (1)
Inventário: 2.ª Vara – Caixa 1826/1827/Volume 17; 18/10/1827.
As terras dele ficaram com os campos Cordeiro Valadares de Arinos MG
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