POR JOSÉ ALUÍSIO BOTELHO
CONTEXTO HISTÓRICO
O Testamento de Bernardo de Mello Franco, redigido em 1878 na cidade de Paracatu, Minas Gerais, ilustra a vida e a estrutura social da cidade mineira no último quartel do século XIX. Nesse tempo, o Brasil ainda vivia os estertores da monarquia e contava com uma sociedade marcada por grandes propriedades rurais, onde a sucessão de bens era cuidadosamente planejada para manter a coesão familiar e econômica. Paracatu, vinda da época áurea do ouro, se tornara uma região agrícola e influente em Minas Gerais, tinha como característica famílias tradicionais que preservavam valores religiosos e laços patrimoniais fortes.
O Dr. Bernardo de Mello Franco, de origem rústica e formação em ciências médicas na Europa, elaborou seu testamento detalhadamente, com certo teor filosófico e, às vezes, com um discurso político-partidário, e até certo romantismo, revelando preocupações típicas de seu tempo. Em primeiro lugar, ele expressa uma fé católica profunda, refletida em seu desejo de um funeral discreto, missas de corpo presente e um oitavário. O catolicismo permeava a vida e as disposições finais, sendo o pedido de orações uma prática comum. O leitor deve prestar atenção às declarações do testador relativas aos ritos de seu funeral, conforme a visão de humildade que regia aquele rito religioso.
A estrutura do testamento mostra uma preocupação em assegurar o bem-estar dos filhos, herdeiros da chamada “terça”, embora ele declare perda de seu patrimônio e somente ter o necessário para as necessidades diárias da família, preocupação essa, ilustrada pelo desejo de seu filho Júlio César Franco de cursar a Universidade ou Academia, abortado pela crônica falta de recursos, apelando aos irmãos a ajuda pecuniária necessária.
No âmbito familiar, cita sua filiação natural e delega ao pai a importância dele na estrutura da igreja em Paracatu. Embora tenha vivido em concubinato, inicialmente faz menção elogiosa a sua companheira e, ao mesmo tempo, lança uma pitada de dúvidas relativa a sua honra, quando diz ter tido “oito ou nove filhos” e coloca uma interrogação em deles para logo adiante colocar a honradez dela em dúvida, ao ser alertado por alguém. Institui sua amada filha mais velha, Augusta, herdeira de sua terça, como um prêmio pela abnegação em cuidar dos irmãos menores, após o falecimento de sua companheira, que por dedução, ocorreu precocemente.
Na política, demonstra sua amargura com as perseguições e inveja de seus inimigos políticos, obrigando-o a migrar para a Vila da Bagagem, por ocasião dos embates políticos ocorridos em Paracatu em 1849. Mesmo com as decepções na política, usando de retórica inerente às lides políticas, recomenda seus filhos a se filiarem ao seu Partido Liberal.
Este testamento, portanto, é um exemplo da complexa dinâmica social e econômica da época, marcada por laços familiares, devoção religiosa, responsabilidade com heranças e o uso de testamentos para assegurar a continuidade do patrimônio e o bem-estar dos herdeiros.
Testamento (transcrito na grafia atual)
Fé católica:
Em nome de Deus Primo e Uno, em quem eu Bernardo de Mello Franco firmemente creio, e em cuja fé, tendo tido a fortuna nascer e ser educado, protesto e espero continuar a viver, forcejando sempre por observar escrupulosamente tudo quanto sabiamente dispõe e ensina a Santa Madre Igreja, ou antes o mesmo Deus, que fazendo-se homem, quis redimir o gênero humano. Acho-me no meu estado normal, senhor de todas as minhas faculdades intelectuais, mas não perdendo de vista o inevitável tributo que devemos a natureza, e de quão precária é a existência, vou proceder a este testamento a fim de, conforme permitem as leis do meu país, dispor de meus poucos bens, e de todos os meus direitos para depois de meu passamento. Sou cidadão brasileiro, honra de que assaz me ufano, e há vinte anos acho-me novamente estabelecido nesta cidade de Paracatu, tendo regressado do comércio Diamantino da Bagagem, hoje cidade, onde por minha infelicidade residi por alguns anos em consequência da proscrição a que fui votado pela infundada inveja, pelo delírio cruel, pela manifesta e descomunal injustiça de meus inimigos políticos, que me acabrunhado com a mais bárbara perseguição em mil oitocentos e quarenta e oito, obrigando-me a emigrar deste para aquele país, onde as flores que encontrei se transformaram em duros e mortíferos espinhos, sendo eu ainda vítima da ambição e má-fé de alguns especuladores, que também com a mais bradante injustiça conseguiram desbaratar e apoderar-se da pequena fortuna que a custa de honrado trabalho havia conseguido adquirir!
Naturalidade e filiação: “quis o Todo Poderoso que nesta cidade viesse eu a luz do dia aos vinte e cinco de maio de mil oitocentos e vinte e um, filho natural (por tal reconhecido em testamento solene) do reverendíssimo Joaquim de Mello Franco, Cônego Provisor, Vigário Colado e Pároco Colado que foi desta freguesia, e de Dona Maria Francisca da Cunha Branco, ambos já há muito falecidos, a saber: aquele a dezenove de dezembro de mil oitocentos e quarenta e três e esta, a oito de agosto de mil oitocentos e cinquenta e cinco”.
Declarações
Falecendo eu fora desta cidade, onde, a despeito de meus desejos, não poderei talvez permanecer, em razão de não encontrar nela a animação de interesses que ao menos possam fazer face as minhas despesas, aliás já reduzidas até mais do que prometia minha posição social, quero ser sepultado, se possível for, em caixão de tampa forte, vestido meu corpo de casaca, calças e colete pretos (sem o hábito medonho com que costumam fazer dos restos mortais um objeto de assombro e de horror), isto em qualquer lugar, sagrado ou não contanto que não seja de mistura com outros despojos mortais, com mais cômodo for, sem ostentação, sem pompa, que tão mal se casa com o triste espetáculo da destruição humana; acompanhado pelo Reverendo Pároco do lugar, que encomendará conforme o rito da Igreja na sua mais humilde, e por isso mesmo mais tocante e sublime caridade, e me dirá missa de corpo presente, fazendo iguais ofícios dois Senhores Sacerdotes mais, havendo-os, tudo de acordo com esta verba e aprovação das pessoas que formam a parte mais atendível de minha comitiva.
Quando, porém, o dito meu passamento venha a ter lugar nesta cidade, ou suas proximidades, será meu funeral feito a arbítrio de minha família, a quem com tudo muito recomendo que tenha em vista quanto a respeito ficou dito, e o disponha sem pompa, com aquela humildade que entendo ser um dos mais belos característicos do cristianismo, evitando sobretudo distribuição de cera a quaisquer pessoas que se apresentem sem convite, a fim de não se dar o escândalo de profanação com que certa classe, que não qualifico, no funeral costuma fazer dias de folgança, de especulação e de imoralidade. Também peço a minha família que escolha seis dos meus mais íntimos amigos para conduzir meu corpo à sua última morada, fazendo-lhes para isso os necessários convites com antecedência.
Declaro que nunca fui casado e que no estado de solteiro foi a Divina Providência servida dar-me, além de outros que descansam na eternidade, oito ou nove filhos, que existem a saber, Augusta (35), Bernardo (falecido), Clarindo (30), Teresa (?), Adelaide, Joaquim (23), Júlio (22), Maria (18) e Henrique (15), havidos todos de Maria Cândida Mundim, de saudosa memória, mulher solteira, mas que sempre considerei honrada, embora alguém me disse há pouco o implacável desgosto de por isso em dúvida, filha legítima de Mathias Lourenço Mundim e sua mulher Lúcia de Sousa Dias; cujos meninos (repete os nomes deles), prevalecendo-me das sábias e liberais disposições do decreto número 463 de 02/09/1847, reconheço por meus filhos e como tais os declaro e instituo legítimos herdeiros de meu nome, de meus poucos bens e de todos os meus direitos, e nesta hora extrema perdoo os desgostos que alguns me deram, e injustiças que me fizeram, esperando que também perdoar-me hão as impertinências com que algumas vezes procedi, obedecendo ao meu temperamento nervoso e eminentemente sensível.
Peço em primeiro lugar a minha filha Augusta de Mello Franco, em segundo lugar a meu irmão Doutor José de Mello Franco, e em terceiro a meu digno cunhado Senhor José Martins Ferreira, que lembrados da pura amizade que sempre lhes consagrei, se dignem de ser meus testamenteiros pela ordem em que ficam nomeados, havendo-os conjuntos e a cada um de per si por abonados, e constituídos dos Feitores, Administradores, Curadores e bastantes procuradores de meus bens; tutores de meus filhos que acaso se acharem ainda em menoridade. Ao que efetivamente aceitar a testamentaria e administração de meus bens, sentido não poder fazer mais, concedo a vintena legal e para a prestação de contas o tempo também legal de um ano, que quando ocorram circunstâncias atendíveis, poderá o Senhor Juiz ampliar até o dobro. Meu testamenteiro, com a possível brevidade, fará distribuir aos pobres desta cidade (ainda mesmo falecendo em um outro qualquer lugar) a quantia de cento e vinte mil reis em esmolas de dois mil reis, que o dito meu testamenteiro poderá aumentar como lhe parecer justo, para aqueles que por suas circunstâncias forem dignos de mais avultado socorro: recebam meus conterrâneos esta insignificante lembrança como mais uma prova do amor que sempre lhes dediquei, e convençam-se de que grande pesar levo a sepultura, o de não ter podido beneficiar amplamente, como desejava, o belo, porém infeliz torrão em que nascemos. Não permitindo minhas fracas posses que me lembre com legados das inúmeras pessoas que me são caras, do remanescente de minha terça.
Declaro herdeira a minha muito amada filha Augusta, isto em remuneração do muito que tem sofrido como mãe que se tornou de seus irmãos. Levo um indizível pesar, o de não ter podido satisfazer a reconhecida vocação de meu filho Júlio, facilitando-lhe os meios de se instruir até conquistar o título de Doutor em qualquer Universidade ou Academia. Fiz quanto era possível para conseguir aquele desiderato sem comprometimentos e infelizmente baldados foram meus esforços, pois que apenas ia podendo ocorrer às necessidades ordinárias da família.
Agora que falo com a solenidade de quem se despede deste mundo de enganos, faço debulhado em lágrimas um apelo aos nobres sentimentos dos irmãos que me sobrevivem, pedindo-lhes em nome de nossos pais que façam aquele bom rapaz o benefício que eu mesmo, desfavorecido da fortuna, não pude lhe fazer.
Declaro cheio de infâmia que, contando já trinta e cinco anos de vida política, nada tenho poupado e nem pretendo poupar enquanto existir, para mostrar-me sempre fiel e desinteressado sectário das ideias que fazem o belo programa do partido liberal, tanto que, a despeito de minhas limitadas forças, na decidida sustentação desses princípios, tenho despendido para mais de quarenta contos (sem falar em sacrifícios pessoais) de cuja falta muito se hão de, sem dúvida, ressentir meus herdeiros. Seja-me entretanto, nesta hora solene, permitido recomendar meus pobres filhos a esse partido, em cujo patriotismo, a despeito de decepções amargas, que considero como próprias de tempos anormais e de aprendizagem ainda acredito, não podendo também duvidar de seus sentimentos de generosidade.
Declaro que devo a Senhora Dona Palmira Augusta de Miranda quinhentos mil reis, ou o que constar de uma obrigação que tem em seu poder e é minha vontade que esse pagamento se faça pela minha terça e do modo que mais agradar a dita senhora Dona Palmira. Declaro mais, para evitar dúvidas de que mesmo depois de morto tenho receio de me envergonhar, que nada tenho com o gadinho de criar, pois tudo lhe pertence exclusivamente, por doação que muito livre e espontaneamente lhe fiz. E por esta forma, hei por findo este meu testamento, pelo qual revogo outro qualquer, cédula ou codicilo que anteriormente tenha feito, porque quero que somente este valha e tenha inteiro vigor e cumprimento, visto ser em tudo conforme minha espontânea e livre vontade.
Peço portanto as justiças do Império, que suprindo as faltas e havendo por expressadas todas as formalidades e cláusulas em direitos necessários, se dignem de cumpri-lo e fazê-lo cumprir precisamente como nele se contém; cujo testamento foi todo escrito de meu próprio punho, e também vai por mim assinado, nesta cidade de Paracatu, aos dezesseis de novembro de mil oitocentos e setenta e oito. Assinatura.
Morreu aos 04/04/1880.
Fonte:
Caixa 1881-A Volume 07 – 03/06/1880.
Comentários
Postar um comentário