Por José Aluísio Botelho
Contexto Histórico:
"A história é testemunha do passado, luz da verdade, vida da memória, mestra da vida." (Cícero)
Modernização Comercial e Práticas de Mercado em Paracatu (Século XIX)
A modernização das relações comerciais e a transformação das práticas mercantis, alinhadas ao desenvolvimento do capitalismo, desdobraram-se de maneira lenta, progressiva e heterogênea pelo território brasileiro, conformando-se às particularidades regionais. Enquanto nos grandes centros urbanos do Império — como Rio de Janeiro, São Paulo e Recife — despontavam, já nas décadas de 1830 e 1840, bancos comerciais e sociedades mercantis capazes de fomentar as economias locais e interioranas, os sertões brasileiros mantinham uma dinâmica distinta. Nesses rincões, imperavam comerciantes abastados que monopolizavam o fluxo de gêneros e atuavam como agentes financeiros informais, os chamados capitalistas.
Em Paracatu, cidade situada no noroeste mineiro, a ausência de sociedades comerciais de médio ou grande porte consolidava a subordinação econômica ao eixo Rio de Janeiro, de onde provinham os manufaturados e gêneros essenciais ao abastecimento regional. Os negociantes capitalistas locais destacavam-se no comércio de produtos nacionais e importados, escravos, animais e, sobretudo, na concessão de empréstimos a juros módicos — entre 1% e 2% ao mês —, condição viabilizada pela crônica escassez de moeda circulante e pela estabilidade monetária do período. Seus clientes prioritários eram grandes proprietários rurais, pequenos comerciantes e a população em geral, todos sujeitos aos ciclos de endividamento característicos de uma economia periférica.
O centro financeiro e comercial de Paracatu concentrava-se nas ruas de Goiás, do Ávila e das Flores, que convergiam para o Largo do Amparo. Na segunda metade do século XIX, auge da influência desses comerciantes — portugueses e naturais da terra —, esses logradouros abrigavam a maior densidade de estabelecimentos mercantis, estendendo-se pelas vias adjacentes. Inventários da época revelam fortunas acumuladas em espécie, frequentemente destinadas a empréstimos pessoais. Contudo, o ocaso gradativo desses potentados, entre o final do século XIX e as primeiras décadas do XX, somado à pulverização de seus patrimônios entre herdeiros, precipitou o declínio desse modelo econômico. No alvorecer do novo século, as relações comerciais na região começariam a se reconfigurar com a fundação de pequenos bancos e sociedades mercantis, marcando a transição para um sistema financeiro mais institucionalizado.
Citamos e descrevemos com informações de genealogia, alguns negociantes e capitalistas:
1 Ricardo Serafim de Sousa Porto, português da região do Porto, foi talvez o homem mais rico de Paracatu no seu tempo. Emigrou para lá no início da década de 1840, juntamente com seu conterrâneo Antônio da Silva Paranhos, que iria se tornar um potentado na vizinha Catalão. Concunhados, tornaram-se sócios de inúmeros negócios tanto em Paracatu, como em Catalão e prosperaram rapidamente. Ricardo Serafim, talvez com a sua prosperidade e influência política e social, em meados do século 19 foi nomeado Cônsul Honorário do governo português região de Paracatu. Ao mesmo tempo, por casamentos na descendência, mantiveram suas fortunas e negócios unidos de forma coesa por longo período de vivência. De forma ilustrativa, para se ter uma ideia do patrimônio de Ricardo Serafim, seu Monte Mor, por ocasião de sua morte, orçava em 320 contos de réis, possuindo 18 moradas de casas distribuídas nas principais ruas da cidade. Seu comércio era anexo à casa de morada, um sobrado na rua das Flores esquina com o Largo do Amparo. Tudo desapareceu na poeira do tempo. Como capitalista deixou uma volumosa quantia em créditos a receber e para exemplificar, somente o coronel Rodolfo Adjuto e seus filhos lhe devia cerca de 140 contos de réis.
Embora tenha adquirido tamanha ascensão social e econômica, até o presente nunca se desvendou a freguesia portuguesa de onde foi originário.
Fonte:
Inventário: 2.ª Vara - Caixa 1908/Volume 08 - 08/01/1908
1.1 Major José Joaquim de Faria Lopes Júnior, nascido em 1836 e falecido em Paracatu aos 09/08/1911; natural do lugar de Sousa, freguesia de Santa Maria de Martim, Concelho de Barcelos, Portugal, filho legítimo de José Joaquim de Faria Lopes e de Custódia Rodrigues de Oliveira. Abastado comerciante e latifundiário em Paracatu, foi casado com Lucinda Serafim de Faria Lopes, filha legítima do português Ricardo Serafim de Sousa Porto e de Jacinta de Affonseca e Silva Costa, falecida em 12/10/1916; com ausência de filhos herdeiros do seu casal ou fora dele, José Joaquim instituiu como herdeira universal sua mulher e deixou legados para suas irmãs em Portugal. Lucinda Serafim, por conseguinte, em testamento, deixou aos seus sobrinhos e sobrinhas todo seu patrimônio, sendo que, ao capitão Nélson Hormidas de Oliveira, marido de uma sua sobrinha homônima Lucinda, pela sua abnegação e serviços prestados, legou a quantia de dez contos de réis em dinheiro ou bens a seu critério – herdou a fazenda “Três Barras”em Cristalina Goiás. Morador no Largo do Amparo esquina com a rua do Ávila com armazém anexo.
Fontes:
Inventário de Lucinda Serafim de Faria Lopes: Cx. I-26/Voluma 08, de 14/11/1916.
Inventário de José Joaquim de Faria Lopes Júnior: Cx.23/Volume 09, de 18/05/1912.
3 João Crisóstomo Marques de Oliveira e sua mulher Ana Francisca da Silva Marques, naturais de São José do Tocantins, província de Goiás. Ele, filho legítimo de João Marques de Oliveira e de Maria José Barbosa, de Cavalcante, na mesma província; ela, filha legítima de Felipe Ferreira da Silva e de Quitéria Francisca Póvoa. O coronel faleceu em 06/12/1884 em Paracatu aos 71 anos. Sem filhos, deixou um Monte Mor de 66020$000 réis para sua mulher, sua única herdeira. Morador no Largo da Matriz, vizinho da casa de Antônio Loureiro Gomes, onde hoje é a Câmara de Vereadores, foi um típico agiota de seu tempo, um ‘capitalista’, que vivia de emprestar a juros. Sua mulher, dona Ana Francisca da Silva veio a falecer aos 07/11/1891; Ditou seu testamento em 11/11/1885, declarando sua herdeira universal sua sobrinha Ana Rosa Carolina Santiago já no estado de viúva. Magnânima, legou uma chácara no lugar denominado ‘Olaria’, subúrbios da cidade aos seus escravos que lá viviam. Portanto, aparentados e herdeiros do casal foram,
3.1 Antônio Francisco Santiago, natural da vila de Flores, província de Goiás, filho sacrílego do padre Santiago e de Desidéria Pereira Cardoso, esta filha natural de Maria Teixeira de Carvalho. Proprietário da fazenda do Morro, onde faleceu aos 21/01/1891, além de inúmeras propriedades rurais na citada província goiana, acrescidas de rebanhos de gado vacum e cavalar. Contudo, viveu em Paracatu por muitos anos, onde foi forte comerciante e típico capitalista. Exerceu a vereança. Sua mulher, Ana Rosa Carolina da Silva, natural de São José do Tocantins, era filha de João Evangelista e de Regina Carolina da Silva, esta, irmã e herdeira das casas de Ana Francisca da Silva Marques. Como o casal não teve filhos, Antônio Francisco Santiago, em testamento datado de 17/04/1880, instituiu como herdeiros universais sua mulher, sua sogra e sua irmã Joaquina Francisca Santiago, mãe de Joaquim ‘Sô Quim’ de Moura Santiago. (moradores na rua de Carvalho (Calvário?).
(ENCARTE)
A “Dinastia do Muquém”
As origens do coronel João Crisóstomo Marques de Oliveira, sua esposa Ana Francisca da Silva e sua sobrinha Ana Rosa Carolina da Silva nos remetem à denominada “Dinastia do Muquém”, fundada em meados do século dezoito, pela matriarca, vinda da Bahia, Dona Mariana Pereira do Vale. Essa senhora deixou enorme descendência na região, com destaque para Gaspar Fernandes da Silva e sua mulher Rosa Maria de Sousa, pais do capitão João Nicolau da Silva e avós do coronel Antônio Nicolau da Silva, poderoso chefe político de Traíras e São José do Tocantins. Da matriarca dona Mariana também descendem os Francisco da Silva, radicados em Cavalcante, onde, cremos, estavam inseridas as esposas do coronel João Crisóstomo, que embora fosse natural de São José do Tocantins, tinha origem em Cavalcante, bem como a mulher de Antônio Francisco Santiago. Os Francisco da Silva e Francisco Santiago que se interligaram por casamentos ao longo do século dezenove, foram as famílias dominantes em São José do Tocantins. O coronel José Joaquim Francisco da Silva – Comandante-geral da Guarda Nacional da Comarca do Rio das Almas e do Maranhão – a maior fortuna e liderança política do atual norte de Goiás na segunda metade do século 19, foi casado com Dona Francisca Santiago.
Fontes:
Inventário de João Crisóstomo de Oliveira: Cx. I-11 – Volume 05, 03/02/1885;"
Inventário de Maria Francisca da Silva Marques: Cx. I – 13 – Volume 17, de 07/11/1891;
Inventário de Antônio Francisco Santiago: 1.ª Vara - Caixa I -12 Volume 10, de 22/04/1891.
Bertran, Paulo. História de Niquelândia. Editora Verano, Brasília/DF, 1998.
4 Coronel Manoel Monteiro da Motta e Vasconcelos (Rua do Ávila), português naturalizado brasileiro, nascido na região do Porto, filho legítimo de Manoel Monteiro da Mota e de Antônia Maria Monteiro. Em Paracatu tornou-se um próspero comerciante de secos e molhados na rua do Ávila e capitalista, ocupando ao longo da vida cargos de governança: foi intendente provisório na transição da república; proprietário da fazenda Palmital na zona de litígio Minas/Goiás, onde faleceu aos 22/10/1905. Casado com Rita Rodrigues de Azevedo, falecida em 16/09/1883, quando foi inventariada, sem descendência deste casamento. Segundo o genealogista Luís Caxias Rodrigues, Rita Rodrigues de Azevedo foi mãe de Carolina Lepesqueur, esposa do francês Etienne Lepesqueur. Em acordo amigável com Etienne Lepesqueur, cabeça de casal de sua enteada Carolina Lepesqueur, partilharam os bens a metade: do Monte Mor avaliado em
24:000$000, coube a herdeira 12:000$000 da terça de dona Rita Rodrigues de Azevedo.
Manoel Monteiro da Motta e Vasconcelos declarou no seu testamento ditado em 1899, ter 63 anos, ser português naturalizado, instituindo como sua herdeira universal Delfina Augusta dos Santos, de 31 anos à época do testamento, “que mora e reside em minha companhia há 6 anos, em atenção aos bons e relevantes serviços e cuidados prestados a minha pessoa”.
Dentre seus bens inventariados em 1906, deixou uma casa na rua do Ávila, esquina do beco do Chafariz avaliada em três contos e quinhentos mil réis, outra na mesma rua avaliada em duzentos mil réis, além da fazenda Palmital e bens semoventes, alguns escravos, trastes velhos, quinquilharias e grande quantidade de dívidas ativas/dinheiro a receber.
Intrigante é o fato relatado no inventário do desvio de gado vacum e cavalar do espólio do falecido, envolvendo o coronel Pedro da Silva Neiva, acusado como receptador dos animais, encurralados em suas fazendas Boa Vista e Espanta Porco, situadas em Goiás.
Fonte:
Inventário: Cx. I-19/Volume 14, 1905.
(ENCARTE)
Os Lepesqueur
Esta família continuou a exploração da loja comercial herdada do casal Manoel Monteiro da Motta e Vasconcelos e Rita Rodrigues de Azevedo.
Etienne Lepesqueur, natural da Normandia, região francesa, veio para Paracatu na década de 1860, em busca de melhores condições de vida e aventurança. Aí casou com Carolina Rodrigues de Azevedo, filha de Rita Rodrigues de Azevedo, falecida em 1883 aos 64 anos: no assento de óbito ela é referida como mulher branca, porém não assinala sua naturalidade (o sobrenome Rodrigues de Azevedo é encontrado em Paracatu desde os tempos do arraial, oriundo de Sabará). Carolina Lepesqueur herdou doze contos de réis, havidos de partilha amigável entre ela e seu padrasto, o coronel Manoel Monteiro da Motta e Vasconcelos (apud LCR), português naturalizado, comerciante e fazendeiro, proprietário da fazenda “Palmital”, que em testamento legou a sua enteada Carolina uma rica imagem de Santo Antônio. Cremos que esta herança alavancou o patrimônio inicial dos Lepesqueur e não a exploração de cristal-de-rocha nos garimpos de Cristalina em Goiás, mineral que não tinha grande valor de mercado à época.
O Tenente coronel Etienne Lepesqueur faleceu sem testamento em 17/04/1907, quando foi inventariado; sua mulher, Carolina Lepesqueur faleceu três anos depois aos 02/12/1910, igualmente sem testamento.
Herdeiros, filhos do casal:
1 Professor Reneé Lepesqueur, nascido em 1865, casado com Maria Amélia Campos;
2 Antônio Lepesqueur, falecido em 26/03/1899; foi casado com Alice Ferraz de Oliveira, filha de Paulino de Oliveira e Sousa e de Maria Ferraz; senhor e possuidor da fazenda Colúmbia, no então distrito de Rio Preto, atual Unaí, MG.
Filhos:
2.1 Antônio Lepesqueur de Oliveira;
2.2 Hortência Carolina de Oliveira Lepesqueur, casada com Levindo Torres Brochado.
3 Ricardo Lepesqueur, nascido em 1871.
Fontes:
Inventário de Antônio Lepesqueur (1899/1900), 1.º Ofício, caixa I-10, volume 04, de 14/10/1900.
Inventário de Carolina Lepesqueur (1910). 1.º Ofício, caixa I-20, volume 07, de 15/12/1910.
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