Por José Aluísio Botelho
PADRE JOÃO DE SOUSA TAVARES
PADRE JOÃO DE SOUSA TAVARES
Desde
que foi criado o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição em fins do
século quinze em Portugal, milhares de denúncias foram recebidas
pela promotoria do Tribunal tanto de Portugal continental, como das
colônias de além-mar, sendo que, a esmagadora maioria dos processos
foram arquivados, porque não atendiam os requisitos para o
prosseguimento das ações. Localizei na Torre do Tombo, no arquivo
denominado Cadernos do Promotor, um desse processos, relativo ao
arraial de São Luiz e Santana das Minas do Paracatu, datado de 1776,
em que um padre foi acusado de possíveis crimes alcançáveis pelos
braços da inquisição.
O
HOMEM
Padre
João de Sousa Tavares, era natural da cidade da Bahia (assim era a
denominação, muitas vezes, dada à cidade de Salvador, na Bahia,
então capital do Brasil colônia), bacharel em leis pela
Universidade de Coimbra, aonde matriculou no curso de Leis em 01/10/1729, formando em 01/10/1734.
O
padre João de Sousa Tavares, assim como dezenas de outros
sacerdotes, acorreu para as minas recém-descobertas, logo em seu
primórdio, e lá permaneceu até o fim da vida. Como quase todos os
padres de seu tempo, envolveu em sacrilégio com mulheres, e deixou
numerosa descendência na região de Paracatu e alhures, o que
podemos comprovar através de uma de suas filhas, Feliciana, que foi
um dos troncos da família Gomes Caldas, o que qualifica a denúncia
contra ele, no que se refere a sua defesa intransigente do sexo entre
solteiros e fora do casamento, como se verá adiante.
Em
1747 já minerava em companhia de seus sócios em diversas datas
minerais espalhadas ao redor do arraial, concomitantemente com suas
atividades religiosas, advogava no fórum do arraial. Vide imagens ilustrativas:
As datas minerais do padre |
Filha e neta do padre |
Raridade
em um lugar inóspito, sertão longínquo, onde predominava homens
brutos, o padre Tavares era um homem culto, poeta bissexto, que
gostava de tertúlias literárias, e sempre recebia interlocutores em
sua casa para conversas de nível intelectual mais elevado. Um de
seus interlocutores mais assíduo, foi o professor de gramática
Manoel da Silva Pereira, que mais tarde seria um de seus algozes.
UMA
COMEMORAÇÃO ILUSTRATIVA
Em
1771, por ocasião do falecimento de Dona Maria Francisca Doroteia
(1768 -1771), infanta de Portugal, por determinação de D. José
Luís de Meneses Castelo Branco e Abranches, conde de Valadares,
então governador e capitão general da capitania de Minas Gerais,
foi oficiada no arraial de Paracatu, uma celebração de rituais
fúnebres em homenagem à princesa morta, tradição comum na América
Portuguesa, quando morria membros da família real e/ou da elite
local. O texto, um panegírico intitulado - “Expozição Fúnebre
e Symbolica*”, era da lavra do padre João de Sousa Tavares. Nela,
estavam inseridos uma Oração Fúnebre, um Sermão, bem como sonetos
e elegias a infanta, compostas pelo padre, bem como outros poemas em
forma de sonetos, escritos em latim, por alguns letrados do arraial,
tais como o padre Manuel André Fontela, o furriel de dragões Manoel
Lopes Saraiva, que fez uma dedicatória ao governador conde de
Valadares, o sargento-mor Antonio Nunes Maltez e o padre José
Álvares da Costa, que além de um poema, também fez um panegírico
(discurso em louvor, elogio solene) em homenagem a morta. Outrossim,
ao ensejo, os amigos José Pereira de Barros e Manoel da Silva
Perreira compuseram sonetos homenageando o padre João de Sousa
Tavares. O arraial de Paracatu apresentava sinais de vida cultural
pulsante. Para saber mais: A historiadora Flávia Klausing Gervásio
estudou as Ezequias em minúcias para sua tese de mestrado. Ler Aqui e Aqui.
A
DENÚNCIA NO CADERNO DO PROMOTOR 129
Os
denunciantes – O padre João de Sousa Tavares recebia em sua casa
de morada, com frequência, amigos para saraus literários,
culturais, e teológicos, e um deles era o professor de primeiras
letras, o licenciado Manoel da Silva Pereira, que alguns anos depois,
o denunciou por carta, datada de 03 de Junho de 1775, à mesa do
Tribunal do Santo Ofício de Lisboa, alegando os ditames da fé
católica e sua obediência aos Editais do Santo Ofício. Via de
regra, nos arraiais e vilas do Brasil colonial, existia pelo menos,
um comissário do Santo Ofício, encarregado de receber denúncias
e/ou ele mesmo arrogar para si este mister. Contudo, o arraial estava
sem nenhum representante do tribunal inquisidor, devido ao
falecimento do Padre Antonio Mendes Santiago, o último comissário
do lugar, o que levou o denunciante a fazê-la diretamente em
Portugal.
Em
02 de Outubro de 1775, o padre Agostinho Machado Fagundes,
recém-chegado ao arraial, com fama de bom pregador, que curava com
os “Santos exorcismos”, e desafeto do padre João, se encarregou
de elaborar uma peça acusatória contra o mesmo, que, em linhas
gerais, era acusado de blasfemar contra a fé e religião católica,
e de fazer apologia ao sexo entre solteiros e fora do casamento.
Aos
9 de Novembro de 1776, o padre Agostinho Machado Fagundes submete
nova denúncia ao tribunal, no inteiro teor da anterior, que
transcrevemos abaixo. Como o conteúdo das denúncias do professor e
do padre eram semelhantes, reproduziremos somente as elaboradas pelo
padre.
Pois
bem, o padre Agostinho Machado Fagundes envia um sumário de culpas,
que, segundo ele, foram supostamente cometidos pelo denunciado,
divididos didaticamente, em sete tópicos, que enumeramos abaixo:
1º
Que o sangue de Cristo senhor nosso fora derramado pelos
predestinados à glória, e não por todos os pecadores ou réprobos,
alegando que o texto diz: pro orbis et pro multis (para muitos)= e
não=pro omnibus (para todos);
2º
Que quando lhe alegam as tradições, responde perguntando – quem
viu isto?
3º
Que Cristo no Sacramento está “figurativé”, e não “Realiter”;
4º
Que o pomo (fruto com polpa, no caso, a maçã) proibido no Paraíso
fora a cópula carnal entre Adão e Eva;
5º
Que nós somos burros de carga de Nosso Senhor Jesus Cristo,
porquanto que os Gregos negavam o Espírito Santo, e que tudo se
salva e tem verdadeiros Santos na sua Igreja;
6º
Que aplicava textos da Sagrada Página a coisas profanas, com
proposições escandalosas, em que ele defendeu judicialmente a
crioula Mônica Ferreira Souto, onde nas razões finais, disse que a
dita crioula, suposta preta, era verdadeira formosa, e autorizou
estes Louvores com aquelas palavras de Salomão – nigra sum sed
formosa (sou negra, mas formosa ou bela)-, de que resultou, que
dando-se por suspeito Juiz da Causa, foi esta a ser julgada forra
nesta Comarca pelo Ouvidor de Vila Boa dos Goiazes. Ao denunciante
Manoel da Silva Pereira e a outras pessoas, disse que estando próximo
a um ato venéreo, se lhe diminuíra a ereção do membro, e logo
aplicara o texto: “et inclinato Capite, emisit spiritum
(curvando-se a cabeça, ele desistiu)”, declaração esta que está
contida nos autos.
7º
Que bem parecia a cópula entre adultos não ser pecado, porquanto
parecia inverossímil, que facultando cristo para a cópula dos
casados, a quisesse pôr em tanta restrição aos solteiros.
Em
seguida seguem as testemunhas arroladas pelo denunciante:
O
R. Doutor Braz da Cunha Pereira;
O
R. Bacharel Joaquim de Almeida;
O
R. José Severino da Silveira;
O
Advogado Francisco José de carvalho Lima;
O
Advogado José de Jesus Maria;
O
Adv. Ignácio Francisco de Sousa Cortes;
O
R. Matias de Lima Taveira;
O
Mestre de Gramática Manoel da Silva Pereira;
André
Ferreira de Sousa Cordeiro;
Escrevente
José Pereira de Barros;
Domingos
Soares da Costa Perubú.
Obs.:
não existem documentos acerca dos depoimentos das testemunhas.
A
seguir, as indagações (observações?), que fez o padre Agostinho
sobre as preditas proposições:
1º
O seu primeiro autor foi Gotescale (o nome correto é Godescalco,
grifo nosso), à quem seguiu um monge de Corbie chamado Ratram ou
Ratrão ou Ratamo, contra Hincmar Bispo de Reims, o qual requereu um
Concílio, que se celebrou com 12 bispos, 3 Abades, e outros
sacerdotes e diáconos, condecorado com a presença do Rei Carlos.
Neste Concílio foi Gotescale/Godescalco condenado a interdito,
açoutes, prisão, e silêncio perpétuo, sendo pontífice Leão IV;
2º
É de Lutero, e de Calvino, que negam as proposições;
3º
É seguido pelos Calvinistas;
4º
Coincide com os Armínios - “Si primu parentes permansissent in
statu innocentis, nunquam fuisent coituri oblumanam speciam
propagadam.”O chefe desta proposição foi Jacobo de Syro no ano de
1055, que foi condenada posteriormente;
5º
Não sei que os Gregos neguem o Espírito Santo: só leio que a
afirmação proceder este do Pai somente, e não do Filho juntamente:
o que certamente é contra o Concílio de Niceia que devemos
confessar verdadeiro;
6º
Acresce a esta sexta (…) denúncia afirmar-me o advogado Ignácio
Cortes que o denunciado solicitando (…), lhe fizera este soneto
(ver texto) – trecho inicial: 'Filisbella, eu te adoro sacramento’;
7º
Que bem pareça a cópula entre adultos não ser pecado, porquanto
parecia inverossímil, que facultando Cristo a cópula aos casados, a
quisesse pôr em tanta restrição aos solteiros.
Diz
o padre Fagundes: “A que tudo visto, e ouvido por mim = a
saber=pronunciada a primeira proposição, e ouvidas as pessoas
fidedignas, faço esta denúncia ao dito Tribunal por apresentação
que lhe faço por carta ao Sr. Reverendo Doutor Lourenço José de
Queiroz Coimbra, declarando, que a mais de um ano, que dei outra
deste teor ao mesmo Tribunal dentro dos 30 dias do Edital, faço o
registro desta. Paracatu, 9 de Novembro de 1776.
O
denunciado e suas
contraditas – O
reverendo doutor padre João de Sousa Tavares, denunciado pelo padre
Agostinho Machado Fagundes e pelo professor Manoel da Silva Pereira,
fez um inusitado “auto de denúncia”, em 10
de Outubro
de 1775, aonde se defende das heresias a ele imputadas. O
texto, relativamente longo, permeado de citações latinas, as vezes
de difícil compreensão devido a letra do padre, é uma leitura
feita por ele das Sagradas Escrituras, aonde diz que suas proposições
foram feitas, conjuntamente
com o Reverendo Dom
Braz da Cunha Pereira, a pedido do Vigário Antonio Mendes Santiago,
chefe inconteste da igreja no arraial, para qualificar os
conhecimentos teológicos do padre Agostinho Machado Fagundes.
Selecionamos alguns trechos. Diz
ele: “Em casas de minha morada, por não haver neste lugar
Comissário do Santo Ofício, a quem me pudesse denunciar senão na
distância de mais de cento e vinte léguas, fiz este auto de
denúncia, denunciando-me.” Outro trecho: “Que haverá um ano
pouco mais ou menos achando eu com o reverendo Dom Braz da Cunha
Pereira de visita em casa do falecido Doutor Vigário Geral
Paroquiano desta freguesia Antonio Mendes Santiago, comissário
também do Santo Ofício, aconteceu também vi-lo visitar o padre
Agostinho Machado Fagundes,
clérigo chegado a pouco de outras minas a este arraial, com fama de
grande pregador e bom andante; e nos pediu aquele reverendo vigário
calculássemos o dito padre saber o que tinha na sua freguesia (sic).
Entrada a visita, a conversa veio a propósito dizer-lhe o Revendo D.
Braz o que sentia das Sacralíssimas palavras da consagração: Qui
pro verbis et pro multis fundetur
in remissionem peccatorum (que
é dado por vós e por muitos, é derramado para a remissão dos
pecados)= das quais
parece se entendia que Cristo só morreu pelos seus eleitos, e
escolhidos; pois não disse que= pro omnibus (para todos); e só sim
= pro orbis et pro multis (para muitos no mundo).” Outro trecho:
“Sem segunda intenção nem dúvida alguma, na verdade evangélica
e Fé Católica que é verdadeiro filho da Igreja, me ensina que
Cristo morreu por todos e os réprobos por Deus = segue citação em
latim.” Continua o
autor: “Em
outra ocasião da conversa, falando-se nos preceitos do Decálogo,
disse que na lei do Velho Testamento parece não era pecado a
fornicação simplex, não pela razão = crescite et multiplicamini
(crescei e
multiplicai-vos); mas
também por ser tolerado o concubinato e mais abundante a propagação
do gênero humano. Só parece era pecado o adultério, ainda que
naquele tempo, não era o matrimônio Sacramento, mas sim contrato, o
que parece se dava perceber no 6º preceito. Porém, que na lei da
graça declarou a Igreja por pecado mortal a fornicação simplex,
explicando pelo verbo = non fornicaberis (não cometerás).
Em
outro tópico, diz o padre Tavares: “Falando-se do pomo Vedado que
comera Adão, disse que pelo que tinha lido em um autor de grande
autoridade e ciência, se podia entender que o pomo que desgostara
Adão, não foi o material da ciência do bem e do mal, mas, sim o
carnal de Eva por várias razões congruentes, que apontava o dito
autor clericato.
Finalmente,
diz o denunciado: “Creio no santíssimo Sacramento da Eucaristia,
aonde adoro o corpo, sangue, alma, e divindade do meu Senhor Jesus
Cristo. Creio em todos os mais Sacramentos e em todos os mais que a
igreja me ensina, e
propõe para crer, pois
Deus assim o disse, e ensinou, que é a suma verdade em cuja fé, e
verdade vivo e protesto morrer.”João de Sousa Tavares.
O
texto de sua auto de denúncia foi enviado por ele para a mesa do
Santo Ofício de Lisboa, bem como para os vigários colados das
freguesias de Sabará e Raposos, respectivamente Doutor Dom Lourenço
José de Queiroz Coimbra e Dom Nicolau Gomes Xavier, comissários do
Santo Ofício em suas respectivas localidades, por não haver um no
arraial de Paracatu; pelo mesmo motivo, o dito documento foi
endereçado ao Reverendo Licenciado vigário da vara Francisco de
Moura Brochado, deste mesmo arraial de Paracatu, e de seu Continente.
Terminalizando,
no documento por ele intitulado “Razões de Contraditas”, diz o
denunciado “ser o padre Agostinho Machado Fagundes meu público, e
declarado inimigo, não sei se por emulação literária ou se por
força de gênio.” Outro trecho:“Solicita o desagravo de
semelhante infâmia, remetendo a minha denúncia àquele Santo
Tribunal, em o qual me justifico católico Romano, e em tudo
obediente aos preceitos da igreja, e verdadeiro observante da lei de
Cristo que professo.”
Recebimento
da denúncia – Chegou aos Cadernos do Promotor, além das denúncias
do padre Agostinho e do professor Manoel da Silva Pereira, as três
apresentações, e a carta como forma de contraditas do padre João
de Sousa Tavares. Em parecer, a denúncia foi acolhida pela
promotoria, e no libelo introdutório, o promotor em seu requerimento
diz: “por ter o padre João de Sousa Tavares clérigo in minoribus,
Bacharel em Leis, Advogado dos auditórios das Minas do Paracatu,
Bispado de Pernambuco, proferiu e sustentou proposições
blasfêmicas, heréticas, temerárias, e piarum aurium offencivas
(que soa ofensivos aos ouvidos)”, e em seguida enumera de forma
resumida as proposições acima citadas, supostamente ditas pelo
padre acusado. Em seguida diz o promotor: “Proposições como que
atentava, não só defendendo-as, mas atrevidamente as defendia
alegando para esse efeito os sagrados textos tão mal entendidos,
como é de presumir, como escândalo de todos os que lhe ouviam estas
horrorosas práticas que foram proibidas naquela povoação.”
Adiante, prossegue o promotor:“o denunciado é homem instruído, e
por isso a sua má doutrina serve de maior prejuízo assim aos
ignorantes como aos doutos, nestes pelo alcançado mais atendível
que lhes causa, àqueles porque com mais facilidade beberão algum
falso sistema, vendo-a dimanada por um literato; não tendo forças
para se defenderem ou convencerem, e propensos pela natural
fragilidade a seguir uma errônea laxidade (hábitos licenciosos) a
desenfreada libertinagem, pestilento fomento de todos os maiores
vícios.” Por fim, o promotor requer: “Portanto, represento aos
autos, por parte da justiça, que se passe comunicado para que no
Arraial do Paracatu, sejam representadas as duas testemunhas
denunciantes, fazendo-se sumário de mais testemunhas, pelo que
pertence à culpa e procedimento do delatado e todas ratificadas na
forma do estilo do Santo Ofício, e que o mesmo delatado seja
notificado para que no primeiro navio que partir daquele Porto (sic)
se embarque e venha até Lisboa comparecer na Mesa do Santo Ofício,
sob pena de ser castigado como a sua desobediência o merecer.”
Nota:
o parecer e o requerimento do promotor se dá em outubro de 1776.
Conclusão
– o referido sumário de culpas com as denúncias, certamente foi
arquivado nos arquivos secretos do Santo Ofício (Cadernos do
Promotor), sem merecer a instauração de processo inquisitorial como
aconteceu com centenas de outros do mesmo gênero, procedentes Brasil
colônia. Foi mais uma intriga entre dois clérigos sacrílegos.
Para
saber mais: para ler o documento na íntegra, clique Aqui.
Fontes:
a1)
Torre do Tombo, Cadernos do Promotor – verbete “João de Sousa
Tavares”;
2)
Catálogo eletrônico IEB (Instituto de Estudos Brasileiros)/ USP;
3)
Livros paroquiais da matriz de Santo Antonio da Manga de Paracatu,
batismos – 1774/1777;
4) Arquivo da Universidade de Coimbra.
4) Arquivo da Universidade de Coimbra.
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