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CRISTALINA: CONFESSO QUE LÁ VIVI

Por José Aluísio Botelho


Reminiscências

Tomo e faço minhas as palavras do professor Antônio Ribeiro Júnior (que assim como o autor desse ensaio, viveu parte de sua vida em Cristalina), imortalizadas em seu livro – Algumas Saudades Apenas.

Paracatu é a terra saudosa por excelência, além de ser o repositório de minhas mais gratas reminiscências, coração agradecido, posto na bandeja das oferendas e elevado a Deus pela ventura de ter nascido lá.

Cristalina é a terra encantada dos meus sonhos deslumbrantes. Foi lá que descobri a vida e experimentei os encantamentos que fascinam a infância veloz e a juventude fugaz. Pequena, mas airosa, não cabe a cidade na maior metrópole do mundo. A lua cheia cabe inteira num caco de cristal de rocha, no dizer do Dr. Otto Mohn, dos muitos que ornam as ruas da cidade e seus campos majestosos, em cujos cimos rondam sem cessar numes protetores que velam por quantos lá residem e guardam quantos por lá passarem. Representa ela o Parnaso excelso onde reinaram outrora, soberbas musas, vestais sublimes e inesquecíveis, que acalentaram os primeiros arrufos do amor primeiro, mal despertado no meu e nos corações adolescentes dos meus coevos queridos. Vivíamos, então, a fagueira quadra da vida. Não resido lá, até hoje, por insidiosa conspiração do destino adverso, o que não importa, pois se sai de Cristalina, a pequena cidade de então, não saiu de mim”.

Algumas lembranças apenas

Vivi parte de minha infância e adolescência nos anos 60 do século passado em Cristalina, uma pequenina cidade do leste goiano, que se modernizava lentamente, a despeito da inauguração de Brasília como nova capital do país, situada a cerca de 120 quilômetros de distância. Tudo era precário naquele tempo na cidade: energia elétrica, saneamento básico, água potável. A tecnologia ainda distante: não havia telefone, televisão, que só começaria chegar no final da década. Contato com o mundo somente pelas ondas do rádio: Splish Splash, jovem guarda de Roberto e Erasmo Carlos e sua turma, Beatles e Roling Stones. Mesmo assim éramos felizes, vivíamos sem sobressaltos, numa comunidade sem crimes: havia o saudoso delegado Nélson e o indefectível e sempre lembrado sargento Venâncio para cuidar de nós. Diversão pouca, mas suficiente: futebol no imenso campo de terra no bairro Lustosa, “comédias” de frutas nos velhos quintais da Cristalina Velha – jabuticabas, laranjas na chácara de seu Pedrinho, marmelos, galinhas para as galinhadas regadas a muita pinga boa e que tais. A propósito, aprendi a farrear cedo, nas galinhadas cuidadosamente preparadas por Rubão Nazareth e Dimas Ribeiro. Sem falar nas horas dançantes nas casas amigas que abriam as portas para moças e rapazes dançarem a vontade e aguçar os desejos e amores platônicos pelas meninas mais belas de lá. Como esquecer a bela Mércia e a estonteante Mary Grant, filhas de Sô Chico de Paiva? A simpatia de Julieta Sardeiro da Mota, de Lux Attiê, Celina, Hildete e muitas outras, casadoiras, mas recatadas como exigia os rigores e costumes da época, quando a liberação feminina ainda não havia chegado. As horas dançantes no saguão do hotel Piramidal era especial: dona Neném de Arlindo, a proprietária, já no lusco-fusco da vida, apaixonou-se por Roberto Carlos, adquiriu todos os discos possíveis do ídolo da Jovem Guarda, acompanhados de uma radiola moderna, e, entusiasmada com a nova paixão musical, abria o salão de seu hotel para a rapaziada se esbaldar e dançar a vontade, com uma única exigência: a música a ser tocada só a de Roberto Carlos.

Havia o Clube de Caça e Pesca, fundado em 1959, menina dos olhos de Itagiba, seu fundador. Sem muitas atrações para os jovens, volta e meia promovia um baile de gala animado por uma grande orquestra. Lembro-me de deles com a memorável Casino de Sevilla. Mais amiúde eram as bandas vindas de Brasília, como a de Raulino e seus Big Boys.

De tempo em tempos chegava o circo, muito pobres, viviam na penúria. Se instalavam em um terreno baldio e lá vinha o palhaço da perna de pau fazendo as chamadas para os “grandes espetáculos”. Era divertido para quem tinha pouca diversão. Bom era quento eles contratavam alguma dupla caipira para cantar no circo, como certa vez veio a Cristalina os inesquecíveis ‘Cascatinha e Inhana’.

Eu particularmente vivia no mundo que escolhi e me agradava: as farras com os amigos mais velhos (alguns já se foram), os já citados Rubão e Dimas, Solano Abadia, Pedro Bagunça, Osmar Santiago Mangabé, Betim, Joaquim Mundim, Délcio Jorge dos Santos Purraia, Militão Xavier e muitos outros. As idas a zona do meretrício, onde se fingia que não via as idades dos clientes. Certa vez em uma das casas, farra correndo solta, nota-se a presença do juiz de direito, solteirão e boêmio, nosso professor de geografia, no salão. Alguém, para me sacanear, grita: tem menor no recinto! O juiz, comendo amendoim, que levava no bolso do paletó, dizia complacente: não pode não! Era só. Podia, ficava.

Tomar banho no poço do Recurso, lá no Urubu, era um programa imperioso para a rapaziada. E a bica d’água mais valiosa do mundo? A bica de Chico Jorge, localizada em sua chácara nos arredores da cidade. Imperdível. Por fim, o futebol com meus companheiros de sempre: Zé Maleta, Tõe de Vicente, Marquim de Nicanor, Divan Jiló, Chiquinho de dona Dulce, Tião, Esquerdinha (Sílvio Sérgio), Preto (Nílton Lélio). Por onde anda alguns deles?

Bar do Sálvio – bar social da cidade. Gostava de estar por lá. Nas horas de folga dos estudos, ia para lá. Ora ou outra podia saborear os ótimos picolés artesanais, os doces e salgados feitos por Julinha e suas irmãs e às vezes sapear um jogo de bilhar ou sinuca, como queiram, no salão situado no fundo do bar. Conversar com Sô Simão de Oliveira Melo, enquanto ele “esquentava ao sol” na calçada do estabelecimento de seu filho. Conversa e aprendizado para toda a vida. Homem sábio que aprendeu tudo durante as obrigações da vida, e que, gostava de me transmitir, talvez por sentir meu interesse em ouvir sus sabedorias. Observar o movimento e as pessoas que frequentavam o bar de Sálvio era outro passatempo curioso: Fusco, que tinha a moradia e a farmácia ao lado do bar, dia inteiro entrava e saia para fazer o quê? Beber sua pinga Creolinha, de primeira qualidade, fabricada em Paracatu. Ao fechar a farmácia, retornava para o aperitivo do jantar. Zé de Ananias (Melo Franco), bombeiro mor de Cristalina, que consertava tudo e andava com uma chave-inglesa sempre consigo, adorava picolé de groselha, que saboreava o dia todo. Diziam que ele perdeu a sensibilidade da língua de tanto chupar picolé. Quando Tanico Neiva vinha à cidade e ia tomar "umas e outras" lá no bar, era certeza de ótimas histórias, causos engraçados e boas gargalhadas. 

Havia a esquina de ‘Hélio Xerém’, situada na confluência das ruas 21 de Abril e Goiás, onde jogávamos conversa fora em animados bate papos ao longo do dia, à espera da chegada do ônibus da Araguarina, trazendo as novidades dos filmes que iriam ser exibidos no cine Oriente.

Como não me lembrar de Adônis, o Casanova de Cristalina? Acreditava piamente que o espermatozoide não alcançava seu objetivo se a coisa fosse feita em pé. Teve como resultado em sua crença quatro filhos a mais em sua prole. De Sô Wilsão Reinaldo, bebendo sua pinguinha do domingo, rindo sarcástico do nome próprio de dona Negrinha de Manoel Canedo. Indagava ele: como pode uma pessoa chamar Blandina (esse era o nome dela), mãe adotiva do indefectível Rosival e da desmiolada Rosa?

Nunca esquecerei da casa das farras homéricas, onde a liberdade imperava: a casa dos Thompsons, amigos de toda a vida: Jeff, Bily, Percy, Grace, Tuca, Nardo, Henry Dubelino e os outros, incluindo a talismã da família, Margareth, sempre capitaneados por dona Antonieta que administrava a bebedeira.

E aqueles que viveram por viver, desprovidos de inteligência normal, despossuídos e que se tornaram personagens folclóricas no meu tempo. Lembro de Chico Segredo, que no estado sóbrio, era um túmulo, como se diz, guardando tudo que conhecia das pessoas para si; quando bebia, guardar segredo pra quê: soltava aos quatro ventos. De Ascendino “marca hora”: sabia a hora exata em que se servia o almoço nas casas de sua preferência. Lembro de Fenemê, mulato alto e forte, que ganhou o apelido devido a uma má formação no nariz e na boca, talvez decorrente de sífilis, doença infectocontagiosa que grassava naqueles tempos. O apelido era uma alusão ao modelo de caminhão também conhecido como Fenemê (Fábrica Nacional de Motores). Ele abominava a alcunha, resolveu então fazer uma cirurgia plástica corretiva no nariz e na boca: a emenda ficou pior que o soneto. Retornou mais feio ainda. Nunca soube que rumo tomou.

Falar em Dubelino, viveu em Cristalina, o verdadeiro, bebedor inveterado que morava para as bandas da Cristalina Velha, com muitas histórias que não cabem neste texto. Lembro-me do índio patagão que viveu em uma gruta na pedreira do Urubu até morrer.

Não poderia deixar de lembrar minha vivência nos festejos do Divino. As barraquinhas de quermesse, os correios elegantes, as expectativas de namoro, por mais furtivo que fosse. O encontro das folias, tudo era especial. As festas na fazenda de Sõ Juca Gomes, lá para bandas do São Marcos, festeiro de mão-cheia.

Por fim, o ginásio. Terceira turma, iniciada em 1965. Formados em 1968. Turma unida, não havia brigas, desavenças, grupinhos. Todos amigos. Uns mais, outros menos, mas amigos. As professoras inesquecíveis: diretora, Dona Sumaia, de história, Dona Cleide, de português, Dona Olga e dona Gilda, de ciências, Dona Lutz, de matemática, Henrique Filemon, Geraldo Guri, frei Eustáquio, de geografia Fátima de Chaud, de inglês, Dona Ione de Cordelino. Um único porém: no último ano, foi criada a disciplina de Desenho, que até hoje não sei pra que serventia. Ser desenhista, artista plástica surge com o indivíduo, não se forma em sala de aula. Quase não concluí o ginasial devido a essa disciplina. Me salvou meu eterno amigo Valdemar Gasolina, desenhista autodidata, craque no crayon, que fazia os desenhos e me delegava a autoria. Deus o tenha.

Às vezes eram nomeadas pessoas não qualificadas para cargos e funções no educandário, como certo diretor, sem nenhuma qualificação para exercer o magistério. Guardo marcas profundas, decorrentes de um episódio de tortura psicológica de que fui vítima, impetrada por ele. Estávamos sob o regime militar, e, possivelmente, o diretor atuava orientado sob a égide ideológica de então.

Terminado o curso ginasial, Cristalina não oferecia evolução educacional para seus jovens. Tínhamos que ir estudar em outras cidades de maior porte e/ou nas capitais. Ou seja, ir embora continuar os estudos, temporariamente, ou para sempre e nunca mais voltar. Estou incluído na segunda opção. 

Saudade, palavra doce.

Brasília, dezembro de 2022






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