Por José Aluísio Botelho
De Paracatu, em 6 de maio de 1909.
Por uma dessas madrugadas frescas e radiosas deste adorável
mês de maio, era um regalo, uma delícia, desvencilhar-se das cobertas, e sob um
céu de uma limpidez cristalina, sereno e transparente, no qual boiava, por
entre tufos de um azul esmaecido, um desses solenes e majestosos plenilúnios
deste mês pintor, encher os pulmões da macia e doce aura matinal, embevecido no
enlevo desse espetáculo espiritualizador, que a visão do infinito infunde nas
almas dos crentes, em que a Religião deixou por derradeiro vestígio, no
crepúsculo voluptuoso do misticismo...
Antes que do horizonte, já barrado por largas charpas
extensas, em que uns ligeiros tons sulfúreos punham suavidade no amarelo de
ouro vivo que as inflamava, rebentasse, chamejante, a colossal hóstia de luz,
exposta ao cibório imenso do firmamento, para a alimentação ideal das almas
boas e mansas, era um encanto ver rasgar névoas finas as esguias silhuetas das
árvores, que, braços levantados para os céus, formavam uma como que procissão
de monges, saudando em aleluia de bênçãos, o raiar do dia.
E lenta e lenta, esplendorosa e suave, numa explosão de luz,
ia rompendo a manhã, - uma dessas manhãs radiantes que no mês alvissareiro anda
aquarelando no céu com o fulgor de suas tintas de ouro, e que são o
encantamento dos dias estivais neste formosíssimo recanto do sertão mineiro. O
espaço perdia-se de vista num azul de turquesa, sem uma só nuvem a marear-lhe a
cor. O sol – rútilo e caricioso sol de maio – desferia seus raios sob os
cabeços azulados dos montes que circundam a cidade, dourando-os todos.
E a velha Paracatu, bocejando e estremunhando sonolenta e
pesada, mergulhada em sua tristeza dos dias enuviados de abril, acordava,
alvoroçada e alegre, despertada por essas sinfonias de luz dessas manhãs
frescas e radiosas do doce mês mariano, ao contato de uma nova aurora que
desperta gozos e aflora aos lábios sorrisos de ventura...
Infelizmente nem tudo são flores neste mundo. Não só de
alegrias vive a gente. São as dores o principal alimento do espírito.
Misteriosa é a vida.
Realmente, quando mais se folga, quando o espírito alegre
mais se expande, jamais é dado prever-se a iminência de uma dor pronta a
estalar como um raio.
Assim é que, ao amanhecer do dia 4 do corrente, quando menos
se esperava, correu célere e impressionadora(sic) pela cidade a notícia do
falecimento da Exma. Senhora dona Cândida Ulhoa Botelho, virtuosa e digníssima
esposa do Senhor Tenente coronel Fortunato Jacinto Botelho, adiantado
fazendeiro deste município. Tanto maior foi a surpresa de seus numerosos
parentes e amigos, quando todos o sabiam inteiramente restabelecida da
enfermidade que a acometeu, e que a obrigou a guardar o leito por alguns dias.
Restabelecida aparentemente dessa enfermidade, a veneranda
extinta dispôs-se a uma viagem até a florescente povoação do Capim Branco, em
companhia de esposo e filhos, aonde ia em visita à sua extremosa filha, Exma.
Senhora Mariana Botelho Brochado, digna esposa do Senhor capitão Antonio
Brochado, quando no caminho deu-se o inesperado e lastimável passamento.
Foi na fazenda da Guariroba, de propriedade do distinto
engenheiro Sr.Dr. Franklin Botelho, distante desta cidade cerca 10 léguas, que
se deu o doloroso acontecimento que causou a mais lancinante mágoa no seio da sociedade
paracatuense. Partindo daqui na tarde do dia 25 de abril próximo findo, debaixo
de um forte aguaceiro que desabou até a noite sobre esta cidade, a Exma. D.
Cândida Botelho e sua comitiva conseguiram chegar àquela fazenda no dia
seguinte, recolhendo-se logo ao leito, donde não mais se ergueu.
Atacada de repente por uma rebelde pneumonia gripal, o seu
organismo já enfraquecido não pôde resistir aos embates da insidiosa moléstia,
e, às 8 horas da noite do dia 3 do andante, rodeada pelo seu dedicado esposo,
dos seus idolatrados filhos e de muitas pessoas da família, de amigos íntimos e
do seu médico assistente, o ilustre Sr. Dr. Sérgio Gonçalves de Ulhoa, veio a
falecer a estimada senhora, após uma agonia lenta, mas não dolorosa, porquanto
o passamento fez-se sem transição aparente.
A distinta senhora, que era extremamente acatada e querida
por toda a população de Paracatu, da qual era um dos melhores ornamentos, pelos
grandes dotes de seu magnânimo coração e pelas excelsas virtudes pessoais,
pelas quais era considerada uma santa matrona de acrisolada bondade, sucumbiu
na idade de 59 anos. Era a pranteada extinta irmã do Sr. Dr. Thomaz Pimentel de
Ulhoa, distinto médico residente nesta cidade de Uberaba, do Exmo. Sr. Dr.
Duarte Pimentel de Ulhoa, integro juiz de direito de São Pedro de Uberabinha, e
da Exma Sra. D. Ana Paraíso Cavalcante, também residente naquela cidade (Uberaba).
Logo que a triste notícia foi divulgada na cidade, estabeleceram-se
grande romaria de amigos para a casa mortuária da família enlutada, consternados
todos pelo doloroso golpe que tão profundamente feriu o coração do venerando Senhor
Tenente coronel Fortunato Botelho.
O cadáver da Exma. Senhora Dona Cândida Botelho, que foi
conduzido em rede, teve da fazenda da Guariroba para esta cidade um
acompanhamento de extraordinário número de cavaleiros e de pessoas a pé, aqui
chegando às nove horas da manhã.
As 6 horas da tarde, realizou-se o enterro, que foi dos mais
solenes e concorridos que tem havido em Paracatu, vendo sobre o féretro ricas
coroas com expressivas dedicatórias.
Antes de fechar-se o caixão, foi o corpo beijado
entristecidamente pelos desolados filhos, cuja dor se manifestava em pranto
convulso, sendo a custo arrancado junto ao corpo.
Àquela hora, organizado o grande cortejo, indo na frente às
irmandades do santíssimo Sacramento e Bom Jesus dos Passos, seguiu para o
cemitério local. Aí, ao baixar o corpo à sepultura, foi feita a encomendação
pelo Reverendíssimo Senhor Padre Manoel da Assumpção Ribeiro, estimado vigário
geral deste município.
Ao inconsolável viúvo Senhor Tenente coronel Fortunato
Botelho, aos seus extremosos filhos, bem como a todos os parentes da ilustre
família, endereço aqui, ainda que tardiamente, os meus sinceros pêsames.
Josino Neiva*
(Transcrito do texto original publicado no jornal Lavoura e Comércio de Uberaba, edição
1030 de 27 de maio de 1909).
* Paracatuense, membro da tradicional família Silva Neiva, professor, jornalista e escritor.
* Paracatuense, membro da tradicional família Silva Neiva, professor, jornalista e escritor.
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